SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – “Obrigada, foi ótimo falar com você”, diz Julia Roberts, com aquele sorriso absurdo de imenso e lindo, no final da entrevista com ela e com o diretor e roteirista Sam Esmail, por Zoom, no último final de semana.
A atriz de 56 anos, uma das mais famosas, célebres, premiadas, ricas, lindas, bem cuidadas, bem nascidas, bem casadas de Hollywood pode ser uma peste com jornalistas. Com fãs também. Tudo que ela é amada pelo público e pela crítica, por diretores, roteiristas e colegas em geral, é temida por quem, por escolha profissional, tem que entrevistá-la cada vez que ela se compromete a divulgar um trabalho.
Entrevistas com celebridades de Hollywood não são exatamente coisas que acontecem de tanto um repórter raçudo insistir. Esses encontros são de outra natureza, e em geral estão descritos no contrato assinado entre quem quer que seja que pague os milhões de dólares pelo serviço dessas estrelas. Ou seja, é trabalho para todos os envolvidos.
Mas claro que, muitas vezes, quem opta por dedicar a vida profissional a escrever sobre cinema, música, teatro, arte, moda, admire e acompanhe o trabalho de atores, atrizes, cantores, estilistas etc. E aí acaba ocorrendo um descompasso, um degrau invisível entre quem faz as perguntas e quem dá as respostas.
E Julia Roberts costumava deixar bastante evidente que os encontros com a imprensa era a parte do trabalho que ela mais desprezava. No ano 2000, quando estava dedicada ao lançamento do filme “Erin Brockovich – Uma Mulher de Talento”, pelo qual ganhou seu único Oscar de melhor atriz, destratou um colega brasileiro, então correspondente em Nova York.
“Quando entrei para entrevistá-la, em uma suíte do hotel Four Seasons, em Los Angeles, ela me perguntou: ‘Cadê meus presentes? Aqui é assim’.”, conta Marcelo Bernardes. “Fiquei sem jeito, mas segui com a entrevista e ela respondeu às minhas perguntas todas com muito sarcasmo, foi tudo bem desconfortável”.
No mês seguinte, na revista americana Rolling Stone, que trazia o rapper DMX na capa, uma chamada dizia “Julia Roberts Talks Trash” -Julia Roberts fala besteira, em tradução livre. Na matéria, o repórter americano revela que a atriz o havia escondido no quarto da suíte em que deu a entrevista, para ele “testemunhar” o jeito como ela maltratava os jornalistas.
“O repórter contou da minha entrada sem presentes, mas exagerou a história, disse que eu tremi. Não foi exatamente assim, só fiquei muito sem jeito. E, depois, com muita raiva”, conta Bernardes, que hoje em dia ri da história.
Talvez o Oscar tenha amansado Julia Roberts. Ou a vida. Ou, ainda, talvez seja por isso que nos últimos anos ela tem dado entrevistas sempre ao lado de outra pessoa, ou um outro ator do mesmo elenco, ou, como foi desta vez, o diretor do filme, Sam Esmail.
“Quando eu sinto a afinidade criativa que tenho com o Sam, em quem confio totalmente e que sempre me inspira, me desafia, tendo a aceitar os trabalhos. Temos o tipo de alquimia que procuro em um diretor”, diz a atriz.
“Fazer um filme ou uma série de TV é incrivelmente difícil”, diz Esmail. “Quando você encontra esse tipo de entendimento que temos entre nós, é como se tivéssemos um salva-vidas no set, alguém em quem podemos confiar completamente. Fora isso, o trabalho vira uma alegria todos os dias”, completa o diretor.
Com 46 anos, Esmail está se estabelecendo como um criador e produtor cada vez mais poderoso em Hollywood, onde foi revelado em 2015 com o enorme sucesso da série “Mr. Robot”, com Rami Malek, que durou até 2019.
Roberts e Esmail ficaram próximos quando fizeram a série de suspense “Homecoming”, que estreou em 2018. Julia protagonizou a primeira temporada, de 10 episódios, em um papel que se desdobra em duas versões da personagem.
No ano passado, estreou a série “Gaslit”, de oito episódios, produzida por ele e estrelada por ela, baseada em uma personagem real, Martha Mitchell, casada com o procurador-geral dos Estados Unidos no governo do presidente Richard Nixon, John Mitchell, interpretado por Sean Penn.
Martha era uma figura controversa e sincerona que gostava de aparecer, dava entrevistas e participava de programas de TV em que fazia comentários sem nenhuma censura a respeito do que sabia sobre os bastidores do escândalo de Watergate, e que acabou sequestrada por homens de confiança de seu marido para que ficasse finalmente quieta.
O filme que uniu os dois pela terceira vez, “O Mundo Depois de Nós”, é uma adaptação do livro de mesmo nome de Rumaan Alam, lançado em 2020, e que conta a história de uma família que passa um fim de semana de férias enquanto o mundo parece entrar em colapso.
Julia Roberts interpreta Amanda, uma mulher bem-sucedida, mas eternamente irritada, casada com o folgadão Clay, papel de Ethan Hawke, e mãe de dois adolescentes, que, numa noite de insônia, aluga uma casa próxima a Nova York, faz as malas de todos os membros da família e só apresenta seu plano quando é tarde demais para que qualquer um deles tenha tempo de fazer alguma objeção.
“Imaginei a Julia neste papel assim que li o livro”, afirma o diretor. “Não porque ela tenha alguma coisa a ver com a personagem, mas porque eu sabia que, para retratar uma situação tão complicada como a do filme eu precisava da melhor atriz possível, e Julia Roberts é o meu Michael Jordan da atuação, não tem ninguém igual”.
A situação complicada a que o diretor se refere é, basicamente, o fim do mundo. Ou os sinais de que ele está muito próximo que começam a surgir e ficam cada vez mais estranhos. O primeiro deles é a falta de internet, que gera um incômodo geral, principalmente na filha de 12 anos do casal, que está no final da série vintage “Friends” e não consegue conexão para assistir justamente o último episódio.
Assim que a família se instala na casa paradisíaca alugada em Long Island, à beira-mar, decide fazer um piquenique na praia para se distrair do fato de que está todo mundo sem celular. Então, um enorme petroleiro surge em alto mar e vem navegando em direção ao lugar exato em que a família botou suas cadeiras e toalhas e simplesmente não para nunca, até que fica entalado na areia.
Nesta mesma noite, bate na porta um homem negro, papel de Mahershala Ali, e sua filha de 20 e poucos anos, interpretada por Myha’la. Ele veste um smoking, dirige um carro de luxo e diz que é o dono daquela casa, que eles trocaram e-mails para acertar o aluguel, e ele decidiu arriscar a sorte e tentar passar a noite na casa porque um apagão deixou Nova York sem energia e eles moram no 16º andar de um prédio de luxo na Park Avenue.
Isso tudo está nos primeiros 10 minutos de filme, e o suspense instalado só toma proporções cada vez mais terríveis, com subtramas que tocam no racismo, nas teorias da conspiração, na nossa dependência cada vez maior na tecnologia, na fragilidade das relações humanas e no que cada um de nós se torna, ou revela, quando está diante do maior de todos os medos.
“Acredito que, quando as pessoas enfrentam uma crise, suas características mais intrínsecas, aquelas que costumamos manter em sigilo, acabam se intensificando. Isso acaba se manifestando na maneira como tratamos outras pessoas, pessoas que não conhecemos ou que não são tão próximas”, diz Roberts. “É uma maneira de nos proteger e defender as pessoas que amamos de verdade”.
Ou seja: em caso de perigo iminente, não conte com Julia Roberts. Mas ela está ótima em “O Mundo Depois de Nós”, uma das boas surpresas deste final de ano.
O MUNDO DEPOIS DE NÓS
Quando Disponível na Netflix a partir desta sexta (8)
Elenco Julia Roberts, Mahershala Ali, Ethan Hawke, Myha’la, Farrah Mackenzie e Charlie Evans
Produção EUA, 2023
Direção Sam Esmail