(FOLHAPRESS) – O Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional está em crise. Enquanto o presidente Jair Bolsonaro já afirmou ter demitido diretores do Iphan depois que a instituição paralisou obras do empresário Luciano Hang, seu apoiador, uma série de medidas recentes fazem da instituição um órgão-fantoche de bolsonaristas.
Agora, documentos aos quais a reportagem teve acesso mostram que a direção do Iphan tem tomado decisões sem a aprovação de seu conselho consultivo –sua instância máxima– enquanto, paralelamente, trabalha na recomposição de seus membros.
Conselheiros e especialistas temem que o grupo seja aparelhado por pessoas alinhadas ao governo Bolsonaro, como aconteceu com outras áreas do instituto.
O conselho consultivo do Iphan é a instância que, na prática, decide sobre tombamentos e patrimônios a serem preservados. Como mostrou a reportagem, sob Bolsonaro, o grupo já viveu uma paralisia histórica.
Por lei, decisões como a de liberação para que obras protegidas viajem para exposições fora do país também devem passar pelo órgão.
No entanto, em pelo menos dois processos aos quais a reportagem teve acesso, a direção do Iphan deliberou sobre este assunto sem a aprovação dos conselheiros, sob a justificativa de que o grupo está em “processo de recomposição de seus assentos” e que as decisões serão ratificadas após as renomeações.
Um deles é de empréstimos de obras do acervo do Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo, o MAC.
Os dois documentos são datados do mês de junho. Conselheiros e servidores do Iphan ouvidos pela reportagem de maneira reservada se mostraram surpresos uma vez que não houve qualquer tipo de comunicação sobre possíveis impedimentos à atividade do conselho ou sua recomposição –e que, para este tipo de procedimento, bastaria uma consulta por email aos seus integrantes.
Disseram, no entanto, que já havia o temor de que a direção do instituto trabalhasse nos bastidores para alterar os membros e aparelhar o órgão com pessoas alinhadas ao governo.
O conselho é composto por 23 nomes –a presidência, cinco representantes do poder público, quatro representantes de entidades independentes e 13 profissionais de notório saber que representam a sociedade civil.
A brecha para alteração dos nomes foi aberta após o decreto de Bolsonaro, que em abril de 2019, extinguiu diversos conselhos federais com participação da sociedade civil, inclusive o do Iphan –que foi reconstituído posteriormente.
Como mostram outros documentos aos quais a reportagem teve acesso, em janeiro deste ano, a presidência do Iphan –por meio do secretário do conselho consultivo– questionou a procuradoria do órgão sobre qual seria a data de término do mandatos destes representantes da sociedade civil.
A brecha está numa portaria do Ministério do Turismo que renomeou o conselho, de 8 de janeiro de 2021, após Bolsonaro extinguí-lo.
O documento cita, explicitamente, que os membros do poder público e de entidades independentes têm mandato de quatro anos contados a partir daquela data, mas não diz nada sobre o mandato dos membros de notório saber.
“A portaria mencionada foi silente, entretanto, quanto à data a partir da qual contaria o prazo do mandato dos membros de notório saber”, alerta o Iphan.
A procuradoria responde, então, que concorda com a visão da secretaria de que, para os representantes da sociedade civil, vale na verdade a data da portaria de nomeação anterior, de 18 de abril de 2018 –essa que cita explicitamente o tempo do mandato dos representantes da sociedade civil.
A portaria de 2021 somente “oportunizou novas designações aos representantes das entidades” e os membros de notório saber “encerrarão seu mandato em 20 de abril de 2022”, diz a procuradoria.
Na teoria, isso significa que o mandato dos membros da sociedade civil, de notório saber, que constituem a maior fatia do grupo, já se encerraram e podem ser trocas a qualquer momento. E, pela lei, é a presidência do Iphan quem nomeia esses representantes.
Procurado por uma semana para saber se haverá a troca de conselheiros e por que a consulta foi feita, o Iphan não respondeu até a publicação da reportagem. O instituto também não comentou sobre as decisões tomadas sem a aprovação do conselho.
A movimentação acendeu um alarme em conselheiros e pessoas ligadas ao patrimônio brasileiro. Eles temem que, como vem fazendo em outras instâncias, a presidente Larissa Peixoto use a brecha para nomear pessoas alinhadas com o governo.
A alteração no conselho, apontam pessoas ouvidas de forma reservada, representaria a mais incisiva interferência de um governo no Iphan e consolida um movimento que começou em 2019, de nomear servidores sem experiência na área para cargos de chefia.
Jurema Machado, ex-presidente do Iphan, lembra que a instituição, como qualquer outra, sempre foi e será sujeita a interesses políticos, mas que sua instância máxima sempre foi resguardada.
“Em mais de 80 anos lidando com temas sensíveis, nunca houve questionamentos quanto a atuação do conselho, justamente pelo rigor na escolha de seus membros”, diz.
Ela lembra ainda que, pela lei, o ministro superior (no caso, do Turismo) pode decidir não acatar a decisão do conselho. Portanto, prossegue, já há pela lei uma estrutura que compreende, além de aspectos técnicos, também os políticos para a tomada de decisão sobre um patrimônio.
“[A interferência] introduziria um componente de desconfiança e segurança na instituição. É uma total incompreensão do papel do conselho, porque se o Executivo quiser tomar decisões que sejam políticas, ele que tome e não transfira isso para o conselho”, completa.
Foram mais de dez nomeações no governo Bolsonaro até agora, como a da presidente, que fez carreira no setor de turismo e tem vínculo de amizade com a família Bolsonaro e até mesmo a de um bacharel em educação física, atual superintendente da divisão regional de Rondônia, Augusto Celso Figueiredo da Silva.
Desde que assumiu o cargo, Peixoto já trocou os cinco principais diretores do instituto, com destaque para o atual diretor do Departamento de Cooperação e Fomento, pastor Tassyos Licurgo, que vem sendo seu principal aliado dentro do órgão.
“A posição desse governo em relação ao patrimônio cultural é de um desmonte sistemático das políticas públicas de preservação consolidadas no país”, avalia o arquiteto e professor Marcos Olender, coordenador-adjunto do Fórum de Entidades em Defesa do Patrimônio Cultural Brasileiro.
“A gente vê com preocupação essa interferência no conselho porque, se eles forem indicar conselheiros, serão pessoas que têm a ver com a posição que eles têm assumido em relação ao patrimônio.”
A articulação para mudar os conselheiros acontece num contexto de ruído entre os representantes e a presidência. Em fevereiro, 12 dos conselheiros convocaram a diretoria para uma reunião e listaram ações recentes do órgão que, nas palavras deles, comprometem a preservação do patrimônio, como a diminuição do orçamento do Iphan a partir de 2019, a possível venda do Palácio Gustavo Capanema, no Rio de Janeiro, entre outros.
O racha ficou evidente quando a presidente respondeu, em carta assinada junto aos cinco diretores, afirmando que os pontos levantados pelos conselheiros são “desmedidos e desrespeitosos” e pedindo uma retratação por parte daqueles que reclamavam.
O temor agora é que, em sendo feitas as alterações –ainda que a parte do conselho formada por indicações de instituições da sociedade civil não possa mudar–, seria consolidada uma maioria alinhada à atual gestão bolsonarista.
Notícias ao Minuto Brasil – Brasil