SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – A invasão russa da Ucrânia completa um mês em transformação, com todos os atores envolvidos buscando se posicionar ante a perspectiva de uma guerra mais prolongada, enquanto buscam elevar a pressão contra o adversário.
Quando os primeiros mísseis atingiram o território ucraniano na madrugada de 24 de fevereiro (fim da noite de 23 em Brasília), quem não estava incrédulo ao ver Vladimir Putin tornar quatro meses de suposto blefe em realidade passou a comungar da certeza ocidental acerca de uma guerra breve.
De fato, em dois dias já havia comandos russos agindo na periferia de Kiev, a capital do país que Moscou quer ver subjugada e fora da zona de influência ocidental, notadamente sem chance de filiar-se à aliança militar Otan.
A leitura mais comum entre analistas é de que a complexa ofensiva visava forçar uma capitulação do governo de Volodimir Zelenski sem muito sangue. Não foi o que ocorreu.
Por óbvio, ninguém sabe qual é o real planejamento militar russo. Putin pode, contra todas as expectativas, quer transformar a Ucrânia em uma terra ocupada. Ou apenas teve, como parece, ter tido de reajustar suas táticas. Mas isso é agora, um mês no tempo.
Quando invadiu, a Rússia cometeu erros, alguns crassos. O principal foi não ter feito um ataque concentrado de forças, dividindo-se em diversas frentes com objetivos às vezes concorrentes. Ações como assalto aerotransportado por helicóptero em terreno hostil se multiplicaram, com resultados desastrosos. Moscou mal arrisca sua Força Aérea, seja por medo ou necessidade futura.
Isso dito, sua campanha avançou como tal, ou seja, um movimento de tropas e equipamentos buscando objetivos primários e secundários. Ao longo das semanas, contudo, a definição militar que se forma é outra: guerra de atrito.
O principal exemplo disso é Mariupol, porto no mar de Azov que sofre o cerco mais brutal desta guerra. Ali, todo o peso da artilharia russa foi aplicado sobre a cidade e, a exemplo do que fez na guerra civil síria em Aleppo, Moscou abriu corredores para tentar se livrar dos moradores.
Noves fora as acusações de crime de guerra no caminho, parece que a cidade irá cair. Se isso acontecer, um objetivo secundário para o Kremlin se consolida, que é a ponte terrestre entre o Donbass (leste separatista pró-russo) e a Crimeia anexada em 2014.
Isso possibilitará uma retomada do ritmo de campanha se houver reforço, algo que leva semanas, de todo o flanco sul. Daí se pode inferir que os ataques a Mikolaiv e a Odessa ganharão ímpeto, talvez possibilitando um desembarque anfíbio se houver tropa suficiente para fazer a ligação em terra.
Mais importante, tal situação pode permitir uma luta contra as unidades das Forças Armadas ucranianas a oeste do Donbass, buscando um movimento em pinça com as forças ao norte e os regimentos separatistas de Lugansk e Donetsk. Isso forçaria outra guerra de atrito ou a fuga desses elementos para tentar proteger Kiev.
Por ora, o atrito se impõe, e há relatos de forças russas tomando posições defensivas. Mas o tempo está em favor de Putin, que ampliou seu poder interno e mudou a equação de poder com as elites que o sustentavam. Enquanto isso, as negociações seguem abertas, mas sem avanço.
Com todos os problemas, exceto que haja um colapso militar ou um golpe palaciano ora apenas na casa do pensamento mágico ocidental, a Rússia ainda tem vastas reservas de pessoal e armamentos. Está sangrando duramente na Ucrânia, mas Kiev não tem a mesma capacidade de reposição de força.
Talvez, e é bom enfatizar o talvez, este seja o cálculo do russo agora. Com as sanções ocidentais tendo cobrado o pior em termos psicológicos e sendo aos poucos precificadas, até porque elas não chegaram de fato ao coração da indústria de petróleo e gás que alimenta a mesma Europa que condena o Kremlin, Putin sustenta sua posição.
Não que seja um processo indolor. Seu chanceler, Serguei Lavrov, disse nesta quarta (23) que não esperava que o que chamou de “roubo do Ocidente”. “Quando as reservas do Banco Central foram congeladas, ninguém imaginaria, entre os que fizeram previsões, que sanções como essas seriam aplicadas”, afirmou.
O Ocidente, por sua vez, também teme que o ritmo de impasse venha a favorecer Putin. Nesta quinta (24), pode dar um passo decisivo a depender do calibre do anúncio que irá fazer sobre a crise.
Segundo o presidente americano Joe Biden, que irá à Europa, haverá mais sanções a serem combinadas com a União Europeia e o G7, o clube dos ricos que um dia foi o G8 com a Rússia. Se chegarão aos hidrocarbonetos, é algo a ver, já que o tema divide os europeus.
A questão dos refugiados, 3,5 milhões fora 6,5 milhões deslocados internamente na Ucrânia (23% do país ao todo), também já começa a causar incômodos aos membros mais reticentes da UE, como a Hungria. Todas essas divisões se encaixam nas pretensões de Putin sobre os blocos europeus.
Mas a expectativa maior é sobre o encontro em Bruxelas da Otan. Até aqui, a aliança vem garantindo a guerrilha de Zelenski ao fornecer armas portáteis antitanque e antiaéreas, embora o ucraniano se queixe a cada pronunciamento na internet ou por vídeos a Parlamentos mundo afora.
Mas a Otan recusou a qualquer coisa parecida como um ato de guerra: buscar fechar o espaço aéreo ou fornecer armas ofensivas. Assim, os caças MiG-29 poloneses continuam com Varsóvia, e não se viu um influxo de baterias antiaéreas de longo alcance para Kiev. Talvez algo aconteça. Mas coube aos americanos adiantar outro ponto: a reunião deverá estabelecer como a Otan deve reagir caso Putin use uma arma nuclear, química ou biológica.
Uma especulação corrente nos hoje silenciados meios militares russos, tementes à repressão que afeta todo mundo que falar sobre a “operação militar especial” no país, é de que Varsóvia poderia enviar uma força de paz para os territórios do oeste ucraniano, e o governo de Kiev se mudaria para a capital daquelas áreas, Lviv.
Como fazer isso sem iniciar a Terceira Guerra Mundial é outra questão. Mas a pressão para a adoção de um protocolo para a contingência está colocada, apostando em que todas as bravatas de Putin sobre punir com armas nucleares quem se meter em sua guerra sejam apenas isso.
Ainda há espaço, na reação ocidental, para tentar colocar mais ainda o sino no pescoço da China de Xi Jinping, aliada de Putin que não condena a guerra mas rejeita oficialmente dar qualquer apoio econômico ou militar a Moscou. De olho no espólio da crise, Pequim também talvez contasse com uma vitória rápida russa e agora busca cautela máxima.
Mas nesta quinta o secretário-geral da Otan, o norueguês Jens Stoltenberg, disse que Pequim está apoiando Putin de forma política, com o uso de “mentiras descaradas”. Com o apetite de Biden de manter o foco no seu rival estratégico, de longo prazo, é previsível que mais acusações virão.
A pressa ocidental também se deve pelo crescente temor de que as fissuras na tessitura que uniu os países contra Putin comecem a se tornar fendas, e que o preço da adoção do regime de sanções comece a ser mais sentido em suas próprias economias –além de hidrocarbonetos, fertilizantes que têm na Rússia grande produtor já estão nos maiores preços da história, o que afeta toda a cadeia de alimentos do mundo.
Enquanto isso ocorre, a morte segue sua turnê pelos campos e cidades ucranianas. Não há dados confiáveis sobre o custo da guerra, mas a casa dos milhares é crível. Ele se somam aos 14 mil que haviam morrido desde 2014, quando Putin reagiu à queda de um governo amigo em Kiev com a anexação e a guerra civil no Donbass.
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