NOVA YORK, EUA (FOLHAPRESS) – O deputado republicano George Santos, pela primeira vez, admitiu que deve perder o mandato. Numa live na plataforma X, ex-Twitter, durante o fim de semana, o político filho de brasileiros que enfrenta 23 acusações de crimes federais disse que já fez as contas e deve ser derrotado no terceiro voto realizado na Câmara para expulsá-lo do Congresso americano -o que pode ocorrer ainda esta semana.
A nova resolução para expulsar Santos foi introduzida em 17 de novembro, logo após a divulgação do relatório do Comitê de Ética da Câmara que revelou fraudes financeiras espantosas nas campanhas do republicano eleito pela primeira vez em novembro de 2022.
Uma biografia de George Santos será lançada nesta terça (28), coincidindo com as possíveis horas finais de seu mandato. O livro é “The Fabulist: The Lying, Hustling, Grifting, Stealing, and Very American Legend of George Santos” (ou o fabulador, a lenda muito americana de mentiras, trapaças, enganos e roubos de George Santos), escrito por Mark Chiusano, um jornalista que começou a desconfiar do deputado já na sua primeira campanha eleitoral, em 2019.
A Folha obteve o manuscrito do livro e entrevistou Chiusano com exclusividade. Ao jornal, George Santos afirmou que a obra “é uma fábula”, acrescentando que bloqueou o contato com o jornalista em dezembro de 2020 e que este não entrevistou nenhum amigo ou parente próximo dele. Adiantou ainda que pretende escrever ele mesmo um relato sobre sua experiência na Câmara.
Chiusano diz que decidiu contar a história do deputado porque sua história não é apenas uma narrativa individual, mas um sintoma da desfaçatez da política americana hoje. “Fiquei fascinado por alguém que se torna um avatar disso, mas sem o poder, o dinheiro e apoio de uma base de fãs que beneficiaram Donald Trump,” afirma ele, destacando que o deputado conseguiu sucesso na vigarice política mesmo sendo filho de um casal de imigrantes, a mãe empregada doméstica e o pai, pintor de paredes.
“The Fabulist” é, assim, um exame forense dos 35 anos de Santos, cuja vida começou a implodir em dezembro do ano passado, quando o jornal americano The New York Times publicou a primeira reportagem investigativa sobre o então deputado recém-eleito afirmando que ele praticamente inventara a própria biografia.
A biografia de agora não contém revelações bombásticas como aquelas. Mas traz novos depoimentos de conhecidos e parentes e argumenta que, ao contrário do que Santos alega, mentir e roubar sempre fizeram parte do seu comportamento.
Chiusano conheceu o político em 2019, quando ele montou sua primeira e quixotesca campanha no terceiro distrito, vizinho a Manhattan, que habitualmente elege democratas. O autor começou a desconfiar do filho de brasileiros quando pediu a ele para cobrir o lançamento de sua plataforma para o jornal Newsday, o mais importante do distrito.
Na época, Santos respondeu que estava numa “viagem de negócios” na Flórida. Quando o jornalista expressou surpresa, ele não explicou por que havia marcado o lançamento da campanha naquela data se estava a 1.700 km de Nova York.
A longa impunidade do político novato se explica, em parte, devido a condições que Santos não criou: o desaparecimento das Redações de jornalismo local nos Estados Unidos permitiu a ele voar abaixo do radar da imprensa nacional desde 2019. Era considerado um azarão numa área tradicionalmente democrata.
No livro, Chiusano lembra que há uma regra ética no jornalismo americano de não comentar a saúde mental de figuras públicas. Mas, intrigado com a enxurrada de mentiras, muitas delas absolutamente detalhadas mas inúteis para avanços de carreira -como dizer que jogou no time de basquete de uma faculdade que nunca cursou-, sugere que Santos parece se enquadrar no contexto clínico de mitomania, um conceito psiquiátrico em que o mentiroso parece acreditar na realidade de suas fantasias e age de acordo com elas.
Outra das conclusões do autor é que seu personagem sofre de insegurança com a própria aparência, falando de injeções de Botox, lipoaspiração e remédios para emagrecer -cujos custos a Comissão de Ética revelou terem sido pagos com fundos de campanha. O descontentamento com o próprio corpo seria parcialmente explicado pelo desejo desse trumpista de primeira hora de se tornar célebre como seu ídolo e candidato à Presidência em 2024.
Chiusano passou várias semanas no Rio de Janeiro e em Niterói, cidade onde Santos morou mais de uma vez e de onde partiu apressado, em 2011, depois de ser indiciado por roubo de cheques. Entrevistou amigos de uma cena drag que o deputado nega ter frequentado sob o nome artístico de Kitara Ravache, embora haja ampla documentação visual e testemunhos disso.
Várias dessas pessoas com quem o autor conversou disseram acreditar em Santos porque “ele é um grande performer”, conta ele. “Ele se transforma em personagens diferentes para interessar interlocutores diferentes e tem o talento de usar linguagem precisa para cada caso”.
Mesmo se os republicanos conseguirem a necessária maioria de dois terços de votos para aprovar a rara expulsão de um deputado -seria a terceira em meio século-, Chiusano acredita que o primeiro conservador gay eleito para o Congresso pelo partido não vai sumir das manchetes.
“Santos sempre se interessou em gente famosa, fazia postagens constantes sobre Britney Spears e a deputada Alexandria Ocasio-Cortez”, diz o autor, acrescentando que, desde a eleição de Donald Trump, em 2016, a política se tornou ainda mais favorável a essa busca por fama.
Nesse sentido, Santos seria um avatar convincente desse período em que área evoluiu da celebridade pura, como nos casos de Ronald Reagan e Arnold Schwarzenegger, para a infâmia. “Ele é uma pessoa com talentos reais, charmoso e adaptável. Quem sabe ele não apareceria em Dancing with the Stars [reality show americano similar ao brasileiro Dança dos Famosos]?”, especula Chiusano.
À Folha de S.Paulo, Santos reagiu à afirmação, primeiro dizendo que quer viver longe dos holofotes, talvez trabalhando numa ONG. Em seguida, porém, reconheceu que sua situação financeira é precária e disse que, se tiver uma oferta num reality show como esse, teria que “fazer uma merda dessas”.
O julgamento do deputado por crimes financeiros e eleitorais está marcado para setembro de 2024. Nesta segunda (27), ele voltou a dizer que não planeja um acordo com promotores em troca de redução de sentença.