DANIELE MADUREIRASÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Fabrício Moreira, 37, trocou as porções de massa e estrogonofe pelo volante do Uno 2021. Marcos Paulo Benício, 45, abriu mão de montar diariamente marmitex e massas de pizza para atender uma agenda de clientes em busca de imóveis. Já Márcio Silva, 51, continua preparando hambúrgueres -não mais sobre as quatro rodas dos caminhões Mercedes Benz que circulavam na capital paulista, mas em um ponto fixo em Pinheiros, zona oeste da cidade.
Nove anos depois de sancionada pelo então prefeito de São Paulo, Fernando Haddad (PT), em dezembro de 2013, a lei 15.947, que regulamenta a comida de rua na capital paulista, deixou de atrair empreendedores.
Apresentada como um grande incentivo para tirar vendedores ambulantes da informalidade e, ao mesmo tempo, trazer chefes de cozinha para as ruas da maior cidade do país, oferecendo versões acessíveis de pratos estrelados, a lei deixou a desejar ao inibir a livre circulação dos vendedores pela cidade.
Foi o que fez desaparecer da capital as centenas de caminhões de comida que começaram a circular por São Paulo ainda em 2013 (em 2019, somavam cerca de 600). Hoje eles são exceção nos bairros e podem ser encontrados na maior parte das vezes em eventos.
Ao mesmo tempo, a partir de 2020, a pandemia tirou das ruas parte dos 12,3 milhões de habitantes de São Paulo – muitos deles passaram a trabalhar em casa. Também parte dos estudantes universitários, que costumavam sair do trabalho direto para a aula ou vice-versa, agora estudam online.
Foi o que fez definhar no país um mercado estimado em 10% do total do setor de alimentação fora do lar, que hoje soma R$ 543 bilhões ao ano, segundo a Abia (Associação Brasileira da Indústria da Alimentação).
“Eu vendia cerca de 120 refeições por dia”, diz Fabrício Moreira, que trabalhava ao lado do campus da Uninove na Barra Funda, zona oeste da capital paulista. “As aulas deveriam voltar depois do carnaval em 2020, mas nunca mais voltaram. Fui obrigado a parar”, afirma Moreira, que trabalhava nas noites de segunda a sexta em um carrinho de massas. “O pessoal vinha do trabalho direto para a faculdade e jantava antes de ir para a aula.”
Moreira faturava cerca de R$ 20 mil por mês com o carrinho, seu lucro girava em torno de R$ 5 mil mensais. Empregava uma assistente e contava com a ajuda da mãe e da irmã para preparar as refeições. Contava com um Termo de Permissão de Uso (TPU), as primeiras licenças para explorar a comida de rua concedidas pela prefeitura paulistana.
Hoje trabalha como motorista de aplicativo e consegue levantar R$ 3 mil ao mês, líquido. “Não volto mais para a rua”, diz Moreira. “O movimento caiu em relação ao que era antes da pandemia. Na região onde eu trabalhava, não tem mais um fluxo que justifique voltar a colocar o negócio lá. E a prefeitura sempre implicava com a gente: tinha que ter outro TPU para colocar banco na calçada, não podia vender nada além do que estava especificado no termo, era muita burocracia.”
Quem também não tem planos de voltar tão cedo para as ruas é Marcos Paulo Benício. Ele mantinha um carrinho para venda de mini pizzas também nas proximidades da Uninove na Barra Funda. Chegou a vender 150 salgados por noite. “Mas a concorrência aumentou, muita gente passou a explorar a região ao mesmo tempo”, lembra.
Foi quando, um ano antes da pandemia, ele começou a oferecer marmitex para quem trabalhava nas imediações do metrô na Barra Funda. “Meu TPU era para salgado de noite e a prefeitura não deixava vender refeição à tarde”, lembra ele, que diz ter sido obrigado a pagar propina para conseguir a licença na época. “O pessoal que me cobrou trabalhava na subprefeitura da Lapa, onde foi descoberto um esquema de corrupção envolvendo os fiscais”, lembra.
A reportagem da Folha apurou que existe um comércio paralelo de TPUs na cidade -venda e aluguel de pontos, o que é proibido pela legislação. Apenas o permissionário tem o direito de explorar o ponto.
Com a pandemia, Benício continuou trabalhando com delivery, em uma cozinha montada no salão de uma igreja perto da sua casa. “Fiz uma cantina no espaço, conseguia entregar refeições, mas o pároco local, negacionista, queria que a gente abrisse o salão para atendimento presencial, mesmo quando tudo estava fechado por medo do contágio da Covid”, lembra.
Ele acabou desistindo do negócio e hoje trabalha como corretor de imóveis. Nas horas vagas, também é motorista de aplicativo. “Eu até tenho vontade de voltar à gastronomia, mas preciso me reestruturar”, diz Benício, que perdeu as economias durante a pandemia. “Quero comprar um food truck e começar a trabalhar com eventos.”
Márcio Silva tem a mesma expectativa. Ele começou a trabalhar com food truck em 2013, pouco antes da legislação de comida de rua ser sancionada em São Paulo. Fez sucesso com dois trucks Buzina Burger, que atuavam nas regiões da Vila Madalena e do Itaim Bibi, bairros da zona oeste de São Paulo com vida noturna agitada. No caso do Itaim Bibi, a região também concentra escritórios e a avenida Faria Lima, centro do mercado financeiro da capital paulista.
“Muita gente está em home office, que é a antítese da comida de rua”, diz Silva. Ele afirma ter percebido o recuo do mercado de food trucks ainda antes da pandemia. “O brasileiro não tem o costume da comida de rua, de comer em pé, quer ter pelo menos um banco para se sentar”, diz. “Também acha que, por ser de rua, a comida tem que ser muito mais barata do que a de uma lanchonete ou um restaurante”, diz Silva. “Mas não é, se for feita com bons ingredientes, ela é apenas um pouco mais barata.”
Além disso, diz o empresário, o brasileiro não gosta muito de variar o cardápio. “Em Nova York, além dos trucks terem liberdade de circulação pelas ruas, não ficam restritos a um ponto fixo, a variedade de pratos é muito maior: tem comida tailandesa, mexicana, grega, chinesa, o que você imaginar”, diz. “Aqui, o Buzina começou servindo refeições. Mas passamos os últimos três anos vendendo um prato, uma salada e sete tipos de hambúrgueres, o povo só come isso.”
Depois de atingir uma venda de 3 mil sanduíches por mês, vendeu um dos trucks, em 2019, com a desaceleração do negócio. Em 2021, vendeu o segundo truck, já depois da pandemia. Tinha pago R$ 230 mil nos dois caminhões. Acabou vendendo os veículos por R$ 150 mil. Demitiu 12 funcionários. Hoje mantém a hamburgueria Buzina em Pinheiros, aberta em 2017.
“Estamos bem, vendendo cerca de 6 mil lanches por mês”, diz. “Mas ainda temos dívidas contraídas na pandemia. Quero, no futuro, voltar a ter um truck, mas menor e só para trabalhar com eventos aos fins de semana”, afirma Silva, que se sente culpado por ter incentivado, no passado, muitos empreendedores a tentaram a comida de rua.
Entre os anos de 2015 e 2018, ele estrelou o reality show “Food Truck – A Batalha”, no canal GNT, ao lado de Adolf Schaefer, dono do Holy Pasta Food Truck. “O pessoal que continuou na rua está vendendo entre 40% e 60% menos”, diz Silva.
Márcio Silva é um crítico dos chamados “food parks” -grandes espaços alugados em bairros onde os trucks ficavam estacionados, atendendo o público. “É algo que tirava toda a essência da comida de rua, você tinha que se programar para comer no lugar, em vez de encontrar um lugar vendendo boa comida no seu caminho”, diz ele. “Além disso, o aluguel era muito caro.”
A cidade de São Paulo chegou a ter cerca de 30 food parks, diz Mauricio Schuartz, sócio da produtora audiovisual KQi, responsável pelo programa “Chefes na Rua”, transmitido pelo canal Travel Box Brazil. Schuartz esteve por trás de alguns desses empreendimentos, como o Food Park Butantã e o Food Park Marechal, nas zonas oeste e central de São Paulo, respectivamente. O primeiro fechou as portas em julho de 2020, no primeiro ano da pandemia.
“A avenida Paulista, aos domingos [quando o espaço fica fechado para carros], é um lugar incrível para um food park”, diz Schuartz. “Acho que existe um vácuo muito grande na capital para comida de rua, é preciso que o empreendedor entenda as necessidades deste novo público pós-pandemia e tenha menos empecilhos legais para tocar o negócio. “Acho que as regras evoluíram desde 2014.”
SP recebe 30 pedidos diários de autorização para comida de rua A prefeitura de São Paulo informou à Folha que o número de licenças para comida de rua voltou no último ano ao patamar pré-pandemia. “Estamos liberando entre 50 e 60 portarias de autorização por dia para venda na rua, sendo que metade disso é para alimentação”, afirma Maria Albertina Afonso Henke, diretora do Programa Tô Legal da prefeitura de São Paulo.
Instituído em 2019, o Tô Legal procurou viabilizar a instalação do comércio ambulante em 70% das vias da cidade. No caso específico da comida de rua, funcionou como uma evolução em relação aos TPUs, diz Albertina.
“Enquanto os TPUs determinavam um local fixo para o permissionário, o Tô Legal, por meio das portarias de autorização, permite que o vendedor se cadastre para atuar em determinado local de 1 até 90 dias, podendo continuar no espaço em que está depois deste período ou escolher outro”, afirma a executiva, destacando que todo o trâmite pode ser feito online, no site do programa.
A taxa para obter a licença varia de acordo com o valor da ‘quadra fiscal’ requerida, a mesma referência usada para o cálculo do IPTU. Mas a reportagem apurou que, em regiões centrais da cidade de São Paulo, a taxa gira em torno de R$ 900 para um período máximo de 90 dias, considerando seis dias por semana, por dois períodos (manhã, tarde, noite).
Considerando os dados do último dia 5 de janeiro, estavam em atividade 1.132 TPUs e 1.567 portarias de autorização para comida de rua em São Paulo, concedidas pela Secretaria Municipal das Subprefeituras. Os cinco comércios mais demandados são: lanches, espetinhos, pastel, bolos e biscoitos e cachorro-quente.
“Com a pandemia, os empreendedores de alimentação precisaram se reinventar, o que valeu também para os vendedores de comida de rua”, diz Helena Andrade, gestora de projetos do Sebrae-SP. Segundo ela, muita gente que ficou desempregada acabou recorrendo à venda de alimentos, usando inclusive as redes redes sociais para tentar garantir clientela. “É uma evolução para quem antes só usava o panfleto”, diz.
Helena lembra, no entanto, que as margens dos empreendedores de alimentação foram muito espremidas pela inflação dos alimentos e embalagens. “O crescimento do delivery, em sintonia com os novos hábitos de consumo, também tira um pedaço importante da receita dos empreendedores”, diz. Em média, os aplicativos de entrega cobram 27% do valor bruto do produto.
Manoel Salvino da Silva, 55, foi obrigado a partir para o comércio de rua em 2022. Depois de manter lanchonetes dentro de dois parques públicos na capital -no Ibirapuera, por 15 anos, e no Villa-Lobos, por 18 anos [-, ele viu a renovação do contrato ser negada depois que os espaços foram concedidos à iniciativa privada.
O empresário e seus sócios partiram, então, para o trailer de lanches que já tinham adquirido em Moema, na zona sul de São Paulo. “A gente abria só aos fins de semana, para atender ao movimento do Parque das Bicicletas, que fica próximo. Mas passamos a abrir todo dia depois que entregamos as lanchonetes”, afirma.
O movimento das ruas está fraco, diz o empresário, mas ainda assim ele consegue vender cerca de 400 lanches por mês. “Isso é mais de fim de semana. Durante a semana, o que vende é bebida, por conta do parque”, diz Salvino da Silva, que está animado mesmo é em voltar a ter um ponto fixo. Vai inaugurar em março a lanchonete Sabor Ibira, mesma marca que usava nos parques.
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