Estudos, novelas e língua em comum atraem imigrantes de países lusófonos ao Brasil

FLÁVIA MANTOVANI
SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Acostumada a ver o Brasil nas novelas e nos programas das TVs Globo e Record, a angolana Lúcia Destineza, 29, estranhou o que viu quando chegou a São Paulo e foi morar em Artur Alvim, na zona leste.

“Achava que as casas eram como as da novela, mas encontrei outra realidade”, lembra. “No princípio fiquei um pouco decepcionada. Mas hoje não me imagino morando em outra cidade. Amo São Paulo de paixão.”

Assim como muitos imigrantes de Angola e de outros países de língua portuguesa, Lúcia veio ao Brasil para estudar. Chegou com um grupo de sete jovens, todos membros da Igreja Batista de Angola, que tem um convênio com uma faculdade brasileira.

Para realizar o sonho de ser profissional de saúde, ela primeiro cursou tecnologia em radiologia e hoje complementa sua formação em um curso técnico em enfermagem. “O diploma brasileiro é valorizado no meu país. Gosto da metodologia de aulas e da capacitação dos professores daqui.”

Junto com um grupo de amigas de Angola e de Cabo Verde, Lúcia participa do Vindas d’África, iniciativa que promove a arte, a gastronomia, brincadeiras e danças tradicionais de seus países.

O interesse na área artística está entre os motivos que a levaram a escolher o Brasil para morar. “A gente tem um histórico em comum. O Brasil foi o primeiro país a reconhecer a independência de Angola, estamos ligados na cultura, na gastronomia, na dança. É um país que nos beneficia não só pela língua.”

Angolanos foram os que mais migraram para o Brasil nos últimos cinco anos entre habitantes de países lusófonos, mostra levantamento do Observatório das Migrações Internacionais a pedido do jornal Folha de S.Paulo.

Segundo os dados -que incluem solicitantes de refúgio, refugiados reconhecidos e demais imigrantes com Registro Nacional Migratório-, a migração vinda de países de língua portuguesa foi um movimento crescente até 2015, quando atingiu seu pico. Até então, Portugal era o primeiro país de origem entre eles, com os angolanos em segundo lugar.

A partir de 2016, o número de portugueses chegando ao Brasil sofreu uma queda abrupta, enquanto o de angolanos seguiu subindo até 2017. Depois disso, o fluxo geral se reduziu, acompanhando o declínio na chegada de imigrantes de todas as nacionalidades ao Brasil -devido à maior taxa de desemprego decorrente da crise econômica e à falta de políticas de atração para estrangeiros qualificados.

“Pelo censo de 2010, portugueses eram 23% da população estrangeira no Brasil e 93% do grupo dos lusófonos”, diz o demógrafo Wilson Fusco, pesquisador da Fundação Joaquim Nabuco e coordenador do dossiê “Migração em Países Lusófonos”. “Mas avaliando quem chegou há menos de um ano, Portugal cai para o terceiro maior volume, representando 8%, e aumenta muito a importância de Angola, Cabo Verde e Guiné Bissau como origem de fluxos migratórios para o Brasil.”

Muitos desses novos fluxos são de pessoas que vêm ao Brasil em busca de oportunidades de estudos. Tanto que o último Censo da Educação Superior, de 2019, mostra que angolanos estão em primeiro lugar na lista de nacionalidades de alunos estrangeiros no país -são 10% do total. Guiné Bissau aparece em sétimo, depois de Japão, Paraguai, Bolívia, Argentina e Peru, muito mais populosos ou próximos ao Brasil.

“Se comparamos com a população [de menos de 2 milhões], ter essa quantidade no Brasil é muito importante, pois mostra que uma grande parte de guineenses escolheu vir para cá”, diz Fusco. Ele também chama a atenção para o caso de Cabo Verde: com população de apenas 555 mil, é o 15º país da lista de estudantes estrangeiros no Brasil.

Guiné Bissau e Cabo Verde são justamente as duas principais origens dos participantes de um dos mais tradicionais programas brasileiros de intercâmbio estudantil, o PEC-G. Existente desde 1965, recebe jovens de 59 países para cursar graduação em universidades brasileiras. De 2000 a 2019, vieram 3.169 guineenses e 1.416 cabo-verdianos, além de 753 angolanos (quarto lugar nessa lista, atrás dos peruanos).

Desde 2011, o Brasil tem também uma instituição de ensino superior voltada especificamente para a integração com os demais países de língua portuguesa: a Unilab (Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira). A procura pelas vagas para estrangeiros vem crescendo desde então: se no primeiro ano só 43 pessoas fizeram a seleção para as 61 vagas abertas, no ano seguinte já eram 200 e, em 2013, mais de 1.500. Em 2020, 5.567 pessoas tentaram as 143 vagas disponíveis.

A Unilab tem unidades no Ceará e na Bahia, e talvez por isso esses dois estados estejam entre os cinco com mais registros de imigrantes lusófonos no Brasil (Ceará em terceiro lugar, e Bahia, em quinto).

Segundo Fusco, são vários os elementos que atraem os imigrantes de países lusófonos africanos ao Brasil. “Além de programas como o PEC-G, tem a língua, o passado colonial em comum, até a nossa novela, que lá na África é muito presente. Esses aspectos culturais facilitam a decisão de vir para cá.”

Portugal também é um destino para eles, mas o custo de vida acaba tornando o país europeu inacessível para os que não são de elite. “Geralmente, pessoas de países com IDH baixo migram para países de IDH médio. No Brasil, eles conseguem se sustentar com mais facilidade.”

A partir dos anos 2000, acordos bilaterais com países africanos, com investimentos e ampliação da rede consular no continente, também geraram um movimento nos dois sentidos: muitos profissionais qualificados brasileiros trabalharam em projetos em Angola e Moçambique, por exemplo, e o número de africanos em situação regular no Brasil cresceu e se diversificou na primeira década do milênio.

Com o tempo, as características desse tipo de migração vêm se alterando. Se no início vinham principalmente homens jovens solteiros, agora já chegam também famílias. Segundo o censo da Educação Básica, em 2020 havia 1.100 crianças angolanas matriculadas em escolas brasileiras, sendo a 15ª nacionalidade mais comum.

“Isso acontece em outros fluxos, como o de brasileiros nos EUA, por exemplo. Aos poucos deixa de ter só gente solteira, vai equilibrando a proporção entre os sexos, a migração se torna mais familiar”, observa.

No caso das mulheres angolanas, um fenômeno curioso tem sido registrado nos últimos anos: muitas delas têm vindo grávidas para ter seus filhos no Brasil ou para se submeterem a tratamentos de fertilização. Elas costumam viajar sem os companheiros, sozinhas ou com parentes e amigas, principalmente para a cidade de São Paulo, conforme relata o estudo “Mulheres angolanas no Brasil: reflexões sobre migrações, gênero e maternidade”, que ouviu 22 delas.

Entre as gestantes, a intenção é ter uma melhor assistência no parto e também que a criança adquira a nacionalidade brasileira, algo valorizado em Angola. A maioria volta para o país de origem após o nascimento do bebê. Já as que têm dificuldade de engravidar e buscam o Brasil para reprodução assistida permanecem no país durante o tratamento ou vão e voltam com frequência para se submeter aos procedimentos. Geralmente são mulheres com boas condições socioeconômicas que consideram o Brasil um país com medicina de ponta nessa área.

Já a migração mais recente de portugueses para o Brasil se intensificou após uma série de acordos geopolíticos entre os dois países no começo dos anos 2000, que facilitaram a regularização dos dois lados. Eles vieram especialmente no período de recessão no país europeu, entre 2005 e 2014, quando a economia brasileira estava pujante.

“A maioria deles foi para outros países da Europa, o Brasil não era o destino principal. Mas vieram muitas pessoas de classes mais altas, que tiveram suas qualificações profissionais muito bem aproveitadas no Brasil -algo que não acontece quando o brasileiro vai para lá”, aponta Fusco.

Segundo o pesquisador, é preciso levar em conta também que o número de portugueses que migram para o Brasil inclui também os filhos dos retornados, ou seja, imigrantes brasileiros que voltaram do país europeu junto com a família. “Muitos dos imigrantes registrados como nascidos em Portugal e em outros países desenvolvidos, como EUA, Itália, França, Espanha e Reino Unido, são, na verdade, o que os demógrafos chamam de efeito indireto da migração de retorno. São filhos, filhas e cônjuges de pessoas nascidas no Brasil que vêm para cá quando o migrante brasileiro retorna.”

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