FERNANDA MENA
SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Um vídeo postado numa rede social no final de dezembro fez soar um alerta entre os amigos de Matias (nome fictício). Era o registro de um inusitado passeio na chuva pela orla do Rio de Janeiro, narrado com uma voz estranhamente embargada.
“Eu tomei um zolpidem de tarde porque estava muito ansioso e queria dormir, mas fiquei mexendo no celular, e essa é a última lembrança que eu tenho daquele dia”, conta à reportagem o estudante de administração de 22 anos, que foi resgatado por um amigo e levado para casa.
Zolpidem é o nome de um dos medicamentos hipnóticos indicados para insônia cujas vendas explodiram no Brasil nos últimos anos. Segundo a Anvisa, entre 2019 e 2021, elas cresceram 73% para a versão de 5mg, a mesmo que Matias tomou.
Esses remédios são conhecidos como drogas Z, em razão dos nomes que as substâncias receberam: zolpidem, zopiclona (ou eszopiclona) e zaleplona. Ingeridos durante qualquer atividade, promovem estados dissociados, como confusão e sonambulismo, o que coloca a pessoa em risco. E geram dependência quando usados durante longos períodos.
As redes sociais estão repletas de relatos de pessoas que, sob o efeito de zolpidem, fizeram compras extravagantes para muito além de seus recursos, deram declarações desconexas ou embaraçosas e agiram de maneira confusa ou mesmo violenta.
“As parassonias, comportamentos não desejáveis durante o sono, são um efeito colateral importante do uso de drogas Z”, explica a médica neurofisiologista Letícia Azevedo Soster, especialista em medicina do sono e coordenadora da pós-graduação em sono do Hospital Israelita Albert Einstein.
“Tem histórias de pessoas que se machucaram, que compraram coisas e que agrediram outras pessoas, com implicações forenses. É bastante perigoso”, alerta.
Diversas celebridades já culparam o zolpidem por comportamentos inoportunos. Em 2018, a atriz Roseanne Barr teve seu programa na TV americana cancelado depois de um tuíte racista que, afirmou ela, foi redigido sob o efeito do medicamento. O laboratório Sanofi, fabricante do remédio que Barr afirmava ter tomado, emitiu uma nota dizendo que “racismo não era um efeito colateral” de seu produto.
Tuítes bizarros de Elon Musk também foram creditados pelo bilionário como obra do zolpidem. Em 2017, o golfista Tiger Woods foi preso e processado após ser encontrado, desacordado, dentro de seu carro numa estrada, num efeito que atribuiu ao medicamento.
E, ainda em 2010, o ator Charlie Sheen culpou o remédio pela quebradeira que promoveu no quarto de um hotel em Nova York. “É a aspirina do demônio”, disse, um ano depois, numa entrevista.
As drogas Z emergiram há cerca de 20 anos com a promessa de combater a insônia e promover um sono rápido e com poucos efeitos colaterais em comparação aos medicamentos até então disponíveis.
“Os pacientes relatam que são drogas que fazem a pessoa fechar os olhos e dormir, como se fosse um botão de desligar”, conta Soster. “A indústria vendeu essas drogas como se elas não promovessem o efeito-ressaca de outras medicações nem tivessem efeitos colaterais. Não é verdade”, alerta.
A médica aponta para riscos e problemas relacionados ao uso prolongado ou excessivo dessas substâncias.
“As pessoas estão usando cada vez maiores quantidades de drogas Z porque, com o tempo, se tornam refratárias a elas. Já recebi um paciente que estava tomando 40 comprimidos por noite de zolpidem para conseguir dormir.”
Foi o caso de Marcelo (nome fictício), 19, que começou a tomar zolpidem aos 15, após o diagnóstico de ansiedade e depressão associado a dificuldade para dormir. Chegou a tomar 30 comprimidos por semana e admite ter usado o medicamento não só para dormir, mas para ter alucinações durante o período de vigília.
“A cada semana, eu usava mais e mais. Passei a confundir o que era sonho com o que era realidade, vivia em atrito com a minha família, foi destruidor”, diz. Para conseguir medicação suficiente, o hoje estudante de arquitetura conta que falsificava cópias das receitas e mentia para psiquiatras.
Soster explica que, no processo de difusão de drogas Z no Brasil, dois fatores são complicadores. “Primeiro, o fato de o brasileiro ser um povo que tende a ser ansioso, o que potencializa a ocorrência de problemas com o sono”, aponta.
Segundo um estudo realizado por cientistas da USP e da Unifesp e publicado na revista Sleep Epidemiology, 65% dos brasileiros relatam ter algum problema relacionado ao sono.
“O segundo é o fato de o Brasil ter um sistema híbrido de saúde, meio público e meio privado. Então, o paciente vai num sistema, recebe indicação do remédio, vai em outro, recebe também”, conta. “E como os sistemas não estão interligados, ninguém percebe essa duplicidade, que tem acontecido muito com as drogas Z, que são remédios controlados. Isso sem falar no mercado clandestino.”
A médica explica que os problemas de sono ganharam maior amplitude durante a pandemia da Covid-19, quando o gasto energético do cotidiano ficou reduzido com o distanciamento social e o aumento do uso de telas incrementou os estímulos do cérebro que nos mantêm acordados.
“Isso fez a preocupação relacionada ao sono aumentar, e essa é a base da insônia crônica. A preocupação se torna maior do que o problema em si, ativando o mecanismo de alerta e gerando o desejo de controle do sono”, explica. “As pessoas querem deitar e dormir imediatamente sem assumir as responsabilidades pelos seus próprios processos físicos necessários para isso.”
Regular o horário de dormir e de se levantar, fazer exercícios físicos regulares, expor-se à luminosidade durante o dia, reduzir o tempo de tela de noite e cessá-lo horas antes de ir para a cama são algumas dessas responsabilidades a que Soster se refere.
“É como numa dieta: a pessoa quer emagrecer, mas não quer cortar gorduras nem carboidratos. E, então, toma um remédio para isso.”
O desejo de um controle absoluto sobre o sono com o mínimo esforço, diz ela, também está por trás da epidemia de drogas Z. “Não tem absurdo maior do que tomar uma droga para dormir e outra para acordar. É isso o que está acontecendo hoje em dia.”
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