PAULO SALDAÑA E DANIEL MARIANI
BRASÍLIA, DF, E SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – A prova do primeiro dia do Enem 2021 voltada a candidatos inscritos para fazer o exame em libras trouxe cinco questões diferentes daquelas feitas por estudantes em geral. A versão é destinada para pessoas com deficiência auditiva.
Os itens que só apareceram nesta prova trazem questões sobre racismo, machismo e feminismo. Esses temas desagradam o presidente Jair Bolsonaro (sem partido).
Alguns dos testes contêm textos das escritoras Carolina Maria de Jesus, Gilka Machado e Adélia Prado. As perguntas são da prova de linguagens. Nesse dia, os candidatos fizeram questões de ciências humanas.
O exame começou no domingo (21) sob denúncias de interferência na prova e pressão para troca de questões para alinhar o teste ideologicamente ao governo. A prova segue neste domingo (28).
O Inep (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais) faz versões diferentes do Enem. As provas são identificadas por cores, em que somente a ordem dos itens mudam.
Desde 2018, quando órgão ligado ao MEC (Ministério da Educação) inaugurou um novo modelo da prova em libras, todas as questões de linguagens foram exatamente as mesmas. Só houve troca de um item naquele mesmo ano na prova de matemática.
Candidatos com deficiência auditiva têm acesso à videoprova em libras. Nem sempre pessoas com deficiência auditiva têm a mesma proficiência em português. Quem precisa de leitura labial e usa aparelho auditivo pode optar por atendimento especializado, mas recebe a mesma versão da prova, a verde.
Em nota, o Inep afirmou que pode haver alterações de questões para adequar ao público com deficiência, mas tanto as perguntas que só aparecem na prova para libras quanto as que estão nas outras versões são em geral de interpretação de texto.
Técnicos do Inep temem perseguições caso a prova desagrade ao presidente. Houve pressão para troca de questões.
Segundo relatos colhidos pela reportagem, as equipes envolvidas na elaboração da prova buscaram equilíbrio entre essa pressão, o atendimento à matriz de conteúdos do Enem e a coerência estatística do teste.
O item número 6 da prova verde-libras traz o poema Enredo, de Adélia Prado, que trata de casamentos arranjados e da mulher sem voz para decidir seu futuro. O poema se encerra com os versos “Só eu não disse nada/nem antes, nem depois”.
O enunciado pede a interpretação sobre a experiência da mulher e, entre as alternativas, consta que ela “reafirma sua designação diante de uma estrutura patriarcal”.
Já na pergunta 43, um poema de Gilka Machado sobre “Ser mulher” aborda percepção da “condição feminina” descrita no texto.
Pela disposição das questões na prova em papel, esse item foi substituído por uma pergunta de patrimônio linguístico com base em um texto do Guimarães Rosa (36 da prova rosa).
A pergunta 40 da prova verde-libras traz um trecho do livro “Quarto de Despejo”, de Carolina Maria de Jesus, que faz menção à abolição da escravatura.
“E assim no dia 13 de maio de 1958 eu lutava contra a escravatura atual -a fome”, termina o excerto. Entre as alternativas, “a segregação como perpetuadora de danos ao vulneráveis”.
A disposição dos itens indica que, na versão feita pela maioria dos inscritos, há, no lugar da questão acima, um item de interpretação de texto com base em citação ao escritor Machado de Assis.
O enunciado dessa pergunta (24, prova rosa) cita que o maxixe era um gênero musical “inicialmente associado à escravidão e à mestiçagem”.
Apesar de as questões aparecem em ordens diversas de acordo com a cor da prova, a organização mantém os blocos de itens montados para cada página.
As outras duas questões que só aparecem na prova de libras tratam do homem moderno (8) e da “apropriação intertextual” (16), com base em um texto e imagem de uma instalação artística com uma lupa.
Essa diferença nas provas foi identificada por uma estudante de Vitória (ES). Os professores do pré-vestibular Gama analisaram as questões e descartam, na opinião deles, motivações técnicas.
“As questões que estão na prova verde e as que não aparecem nessa versão não têm nenhum problema. Justificaria troca se tivesse alguma questão de vocábulo não incluído na libras”, disse Paulo Victor Scherrer, diretor da Gama Pré-Vestibular, de Vitória.
“As questões são muito similares, a única diferença é que essas que ficaram só na prova verde são de temas polêmicos de acordo com o governo”, afirmou.
A estudante Mariana Chagas Barbosa Rezende, 17, fez a prova direcionada a inscritos em libras em Vitória, mas pediu atendimento especializado para leitura labial. Ela recebeu o caderno verde e notou a diferença no dia seguinte do primeiro dia de prova.
“Achei muito estranho, a princípio. Eu já fiz alguns vestibulares e em nenhum deles a prova estava diferente. Foi aí que, depois de conversar com meus pais e alguns professores, lembrei da notícia de que o governo Bolsonaro procurava alterar algumas questões supostamente ‘ideológicas'”, disse ela, aluna da escola Monteiro, também na capital capixaba.
“Aí caiu a ficha de que poderiam ser algumas questões que pediram para serem removidas, mas não foram retiradas do caderno verde”, disse.
A estudante afirmou confiar no modelo matemático de correção da prova, mas guarda desconfiança com relação ao governo. “Se um lapso dessa gravidade é passível de ocorrer, o que nos garante que todo o processo não está recheado de interferências?”
Em nota, o Inep afirmou que alguns itens usados para elaboração das provas regulares podem não ser adequados para o público com deficiência.
“As questões podem ter, por exemplo, algum tipo de imagem ou suporte que impossibilita a descrição para o participante, por ficar muito extensa ou até por apresentar a resposta correta do item”, disse a nota.
Apenas uma das questões que não foi usada na prova de libras trouxe um quadrinho. Mas outros itens, também com ilustrações, caíram nas duas.
“Também pode ocorrer de questões da videoprova em Língua Brasileira de Sinais (Libras) não estarem adequadas para o público surdo ou com deficiência auditiva. Nesses casos, os itens podem ser substituídos para a prova adaptada. O objetivo é proporcionar o atendimento especializado com garantia de isonomia entre todos os participantes”, afirmou o instituto.
O órgão ressaltou que o modelo matemático adotado na prova, a TRI (Teoria da Resposta ao Item), permite a troca de itens sem que as provas percam a comparabilidade entre si, “pois as questões são substituídas por outras com o mesmo grau de dificuldade”.
No governo Bolsonaro, a pressão ganhou proporções inéditas na atual gestão do Inep, liderada por Danilo Dupas Ribeiro, e do MEC, com Milton Ribeiro.
A Folha de S.Paulo revelou que Bolsonaro chegou a pedir ao ministro questões que tratassem o golpe de 1964 por revolução, em consonância com o revisionismo histórico que ele e seus apoiadores defendem. Servidores denunciam pressões.
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