No próximo dia 14, o empresário alagoano José Hipólito Correia Costa, 61, comemorará três meses de um transplante de pulmão inédito no país que lhe devolveu a vida, após ter tido o órgão destruído pela Covid-19 com uma fibrose irreversível.
Ele espera ter alta na mesma semana, após completar quase sete meses de internação hospitalar. Desse total, passou 88 dias ligado à Ecmo (Membrana de Oxigenação Extracorpórea), uma espécie de pulmão artificial que oxigena o sangue fora do corpo, substituindo temporariamente o órgão comprometido de maneira severa.
O transplante foi feito no Hospital Israelita Albert Einstein, em São Paulo, e é o segundo realizado com paciente que teve Covid na instituição. O primeiro doente, porém, não sobreviveu. No mundo, foram documentados cerca de 50 procedimentos desde o início da pandemia.
“Se não tivesse ocorrido o transplante, certamente o paciente já teria morrido”, diz o cirurgião torácico Marcos Samano, coordenador de transplante pulmonar do Einstein e professor da USP.
A cirurgia demorou dez horas e envolveu sete profissionais e a situação inusual de ter um paciente conectado a duas Ecmos simultâneas: aquela à qual ele já estava ligado antes e outra usada durante o transplante.
“Para a alegria geral, os dois equipamentos foram desconectados logo após o procedimento”, afirma Samano.
O caso de Costa suscitou vários debates técnicos e éticos. Afinal, por que priorizar um paciente que acabou de entrar na lista de transplante, atingido por uma doença da qual ainda se sabe tão pouco?
Só no estado de São Paulo há pelo menos cem pacientes à espera de um pulmão. No Einstein, são 35.
A favor do empresário havia o fato de que ele era muito saudável antes da Covid (caminhava 15 km diariamente na orla de Maceió) e, mesmo com a doença, seus outros órgãos estavam preservados.
A situação foi discutida na Câmara Técnica de Transplante de Pulmão, ligada ao Ministério da Saúde, que autorizou a cirurgia.
“É um procedimento de alta complexidade, que exige que o paciente tenha condições mínimas de fazê-lo. Ao fazer um transplante sem grandes chances de dar certo, você não só mata o paciente como mata também aquele outro da lista que não teve a possibilidade de ser transplantado”, explica o pneumologista José Eduardo Afonso Júnior, coordenador médico do programa de transplantes do Einstein.
Segundo o médico, antes da Covid-19, pacientes que ficavam gravemente doentes do pulmão por um evento agudo nunca eram candidatos a transplante. “É um paciente que está há muito tempo na UTI, muito enfraquecido, colonizado por bactérias.”
Com a pandemia, muitas pessoas saudáveis passaram a morrer rapidamente de complicações pulmonares. A partir de relatos de transplantes feitos com sucesso no mundo, o Einstein decidiu encarar a empreitada.
Os candidatos precisam passar por avaliação de médicos, psicólogos, enfermeiros, fisioterapeutas, nutricionistas e também pelo serviço social (o paciente tem que ter condições de fazer reabilitação após a alta, por exemplo).
Outro critério é o paciente estar consciente e autorizar o transplante. Costa estava sedado, mas foi acordado. “Na maioria das vezes, a gente tem um paciente grave e não conseguimos acordá-lo. Acordamos o paciente, conversamos com ele e ele respondeu que, sim, queria muito criar os netos e os bisnetos”, conta Samano.
A recuperação foi trabalhosa. Além da perda muscular sofrida durante o longo período na UTI após o transplante, ele teve complicação neurológica e convulsões com rebaixamento do nível de consciência, devido ao uso das medicações imunossupressoras. “Foi o ponto de maior preocupação, mas, depois de alguns dias, ele se recuperou bem”, diz o médico.
Costa foi internado com sintomas da Covid em 18 de outubro em um hospital privado de Maceió. Três dias depois, precisou ser intubado. “A primeira semana foi terrível. Ele melhorava um pouquinho, depois piorava”, conta a filha Alice, 32.
A família, então, decidiu transferi-lo em uma UTI aérea para o Einstein. Chegou com quase 85% dos pulmões comprometidos. “A gente pensou: agora podemos dar uma relaxada. Estamos num hospital que é referência nacional e o caso dele nem é o mais grave. Mas o vírus continuou agindo e foi piorando”, diz o filho Artur, 30.
Com o passar dos dias, Costa contraiu uma infecção bacteriana e, com os pulmões mais comprometidos, precisou ser colocado na Ecmo. “O médico nos falou que, a cada três pessoas que entram na Ecmo, uma não sai com vida. As pernas ficaram moles. Mas se o Bruno Bravin [intensivista que se tornou médico do empresário] estava falando, a gente confiava completamente.”
Com quase três meses ligado ao pulmão artificial, o empresário acabou protagonizando outro feito inédito. Até então, nenhum outro paciente do Einstein tinha ficado tanto tempo no equipamento. “Houve momentos em que a gente ficou sem esperança”, lembra Alice.
Com a possibilidade de transplante, Costa foi sendo acordado da sedação e submetido a fisioterapia ainda ligado à Ecmo, enquanto a família e a equipe médica aguardavam aprovação do procedimento.
“Ou ele transplantava ou ele morria. Muito tempo na Ecmo traz outros problemas. Ele tava muito ‘invadido’, com muitos tubos, muito risco de bactérias, teve hemorragia na perna”, diz a filha.
No dia 14 de fevereiro, às 3h, veio notícia de que havia um órgão compatível no interior paulista. A família contratou uma empresa de táxi aéreo para buscar o órgão.
“O doutor Bruno perguntou de novo: ‘chegou a hora, o pulmão apareceu. Vamos?’. Ele respondeu: ‘Agora! Tô pronto’.” O doador do pulmão foi um jovem de 34 anos.
Para a mulher de Costa, Ana, 57, a notícia do transplante foi redentora. “Foi quando eu tive a certeza da resposta de todas as nossas orações. Senti a presença de Deus. Nossa gratidão eterna ao doador e seus familiares.”
Nascido em Taquarana e crescido em Arapiraca, no interior de Alagoas, Costa se formou em engenharia agronômica e passou a trabalhar numa usina, mas, depois de um acidente, ele e a mulher decidiram abrir um supermercado. Abriu a distribuidora de alimentos Asa Branca e se tornou um dos grandes empresários do ramo em Alagoas.
“Essa música, ‘Asa Branca’ [de Luiz Gonzaga], é a preferida do meu pai. A gente botava para ele ouvir na UTI, ainda sedado.”
Costa não quis dar entrevista, mas concordou em gravar um depoimento para a Folha. Ele diz que, assim que tiver alta, quer voltar a andar na orla de Maceió. “Quero caminhar na Ponta Verde, Pajuçara, Jatiúca, que é o que eu adoro na vida. E quero voltar a fazer o Caminho de Santiago ainda este ano.”
Para ele, as caminhadas são formas de autoconhecimento. “Dá uma paz interna, eu converso comigo mesmo.” Questionado sobre o qual o melhor momento nos sete meses de internação, não titubeou: “Será a minha alta”.
Notícias ao Minuto Brasil – Brasil