(FOLHAPRESS) – Em cinco anos, a participação de recursos do SUS nos caixas de hospitais privados sem fins lucrativos quase triplicou. Passou de 4,65% em 2018, para 12,77% em 2023. No ano passado, essa receita foi de R$ 6,87 bilhões.
Os dados obtidos pela Folha de S.Paulo são do Observatório Anahp, associação que reúne hospitais de ponta do país. O Albert Einstein e o Sírio-Libanês, por exemplo, já administram mais leitos públicos do que privados por meio de parcerias com prefeituras, o governo paulista e o Ministério da Saúde.
Estão sob gestão do Einstein 30 unidades públicas de saúde, que incluem três hospitais com 868 leitos -no privado, são 758. Esses contratos somaram R$ 1,18 bilhão em 2022. A receita líquida do hospital no mesmo ano foi de R$ 4,9 bilhões. Neste mês, a instituição assinou contrato para gerir mais um hospital público, agora na Bahia.
Já o Sírio-Libanês administra dez unidades públicas, sendo quatro hospitais com 668 leitos públicos, por meio do seu instituto de responsabilidade social, reconhecido como uma OSS (organizações sociais de saúde). Os contratos somaram R$ 335,6 milhões em 2022. O hospital tem 544 leitos privados, com receitas operacionais de R$ 2,87 bilhões no ano passado.
De acordo com Antonio Britto, diretor-executivo da Anahp, os recursos públicos que chegam aos hospitais privados têm vindo, principalmente, da compra de serviços prestados, como exames e cirurgias.
“Há uma impotência do SUS em responder à crescente demanda por procedimentos de média e alta complexidade, e as compras de serviços tentam suprir essa deficiência.”
Segundo ele, as parcerias para a gestão de unidades públicas, como a do Einstein e a do Sírio, representam uma fatia menor, mas há potencial para crescimento.
O avanço dos hospitais privados na gestão dos serviços públicos é visto com ressaltas por especialistas em saúde pública. A médica Ligia Bahia, professora da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro) e pesquisadora do Instituto de Estudos em Saúde Coletiva, afirma que eles estão “comendo o SUS”.
“Eles comem o SUS recebendo renúncia fiscal [por meio do Proadi, Programa de Apoio ao Desenvolvimento Institucional do SUS] e como organizações sociais, gerindo hospitais públicos. Agora, com o negócio do ensino [faculdades de medicina e de outras áreas da saúde], eles usam os hospitais públicos como campo de prática”, diz.
Walter Cintra Ferreira Júnior, especialista em gestão hospitalar e professor da FGV (Fundação Getulio Vargas), diz que a gestão de unidades públicas pelas OSS trouxe ao SUS a possibilidade de uma gestão mais eficiente e mais rápida, mas ainda faltam transparência nos contratos e sistemas de controle e avaliação mais adequados por parte do gestor público.
Na sua opinião, no caso dos hospitais de excelência, é esperado que tenham uma qualidade de gestão superior à média dos serviços públicos e de outras OSS. “Eles jamais pegariam esses serviços para fazer uma porcaria. Não iriam comprometer o próprio nome.”
O Einstein começou a gerir instituições públicas em 2008, quando assumiu o Hospital Municipal do M´Boi Mirim, no Jardim Ângela (zona sul de São Paulo), juntamente com a OSS Cejam.
Administra também o Hospital Municipal Vila Santa Catarina, por meio de um convênio que envolve recursos municipais e do Einstein -vindos de isenções fiscais do Proadi. É responsável ainda pela gestão de um hospital municipal em Aparecida de Goiânia (GO).
Já o Sírio administra o Hospital Municipal Infantil Menino Jesus, na Bela Vista (SP), e três estaduais: Hospital Geral do Grajaú, zona sul de São Paulo, o Hospital Regional de Jundiaí, no interior de SP, e o Hospital Regional de Registro, no Vale do Ribeira.
A Folha de S.Paulo visitou dois hospitais geridos pelo Einstein e pelo Sírio. Ambos contam com protocolos clínicos e ferramentas de gestão importadas dessas instituições, possuem acreditações e, em geral, são bem avaliados pelos usuários do SUS.
Único hospital público a figurar entre os 50 melhores da América Latina, segundo a publicação América Economia, o M´Boi Mirim tem uma central de comando operacional, que aumentou o giro de leitos, possibilitando o atendimento de mais pessoas com a mesma estrutura.
“A gente conseguiu reduzir em 30% o tempo de permanência [de 6,5 dias para 5 dias] em seis meses após o início da central. Ela capta desperdícios e gira mais rapidamente esse recurso [leito], que é escasso”, diz o médico Leonardo Rolim Ferraz, diretor do M´Boi Mirim.
Entre os exemplos de desperdício havia atraso na liberação de leitos pela equipe da limpeza ou na transferência de um paciente de uma unidade para outra. Havia também demora na realização de alguns exames, o que fazia com que o paciente ficasse internado sem necessidade.
Com o ajuste, o hospital aumentou de 2.000 para 2.300 internações por mês. Isso equivaleria à abertura de 60 novos leitos, segundo Ferraz.
Outra inovação foi a criação de uma central farmacêutica dedicada a revisar todas as prescrições médicas. Ela checa, por exemplo, se a dose e o tempo de uso da medicação estão corretos. “A gente evita muitos eventos adversos relacionados a falhas e erros de prescrição.”
Amparados por protocolos definidos pelo hospital, os farmacêuticos têm autonomia para fazer intervenções na prescrição. Após a atuação desses profissionais, houve queda de 30% no uso de omeprazol, medicação muitas vezes prescrita desnecessariamente ao paciente internado.
O hospital tem interagido também com a atenção primária da região em relação aos pacientes crônicos que buscam a emergência com quadros de hipertensão e diabetes descontroladas. Essas situações podem ser evitadas caso esses pacientes sejam mais bem acompanhados no posto de saúde.
Segundo Sidney Klajner, presidente do Einstein, a meta é que essas parcerias gerem resultados positivos também a comunidade, melhorando os indicadores sociais. Hoje, 42% dos moradores dos arredores do M´Boi Mirim têm uma relação direta ou indireta de emprego com o hospital.
O hospital Vila Santa Catarina, referência em câncer, conta com a ajuda de equipes de oncologia clínica do Einstein. O mesmo ocorre em relação às UTIs. “Se a gente precisa do apoio de um super especialista, especialmente em casos de pacientes neurológicos e cardiológicos, rapidamente a gente se conecta”, diz.
O Vila Santa Catarina também opera com um robô de R$ 16 milhões doado pelo Einstein. “No caso da câncer de próstata, o melhor desfecho é com a cirurgia robótica. A gente queria ter o mesmo desfecho no público que temos no privado”, diz Klajner.
O Sírio-Libanês administra quatro hospitais, dois em São Paulo (Hospital Geral do Grajaú e o Hospital Infantil Menino Jesus), e os hospitais regionais de Jundiaí e de Registro, além de outras seis unidades de saúde.
“O nosso foco é levar toda a expertise do Sírio para a gestão pública, todo nosso trabalho é balizado por pilares da eficiência, da qualidade e da satisfação do usuário”, diz Carolina Lastra, diretoria-executiva do Instituto de Responsabilidade Social do Sírio.
O Hospital Pediátrico Menino Jesus, por exemplo, é referência em malformações congênitas, em especial, a fissura labiopalatina e o pé torto. As crianças são acompanhadas por equipes multidisciplinares. Por meio de captações vindas de emendas parlamentares e de empresas privadas, que neste ano somaram R$ 8,9 milhões, o hospital passa por reformas e tem conseguido renovar o seu parque tecnológico.
Fernando Ganem, diretor médico do Sírio-Libanês, explica que os protocolos assistenciais do Sírio são replicados nos hospitais públicos geridos pela instituição, e os dados, compartilhados entre as instituições. “É muito gratificante ver que os indicadores assistenciais [dos públicos] são muito bons.”
Um exemplo são os indicadores cardiológicos, como a rapidez com que se identifica, faz diagnóstico e trata o infarto. Os do Hospital Regional de Jundiaí são compatíveis com os do Sírio e, por isso, estão reportados em conjunto a um banco de dados americano.
A taxa de mortalidade após cirurgia cardíaca, de 3,6%, está dentro da média preconizada pelo Colégio Americano de Cirurgiões.
Desde que o Sírio assumiu a gestão do hospital de Registro, há oito meses, as taxas de mortalidade em cirurgia cardíaca despencaram de 16% para 4%. O tempo médio de internação caiu pela metade (de oito para quatro dias), e o número de procedimentos cirúrgicos dobrou (de 18 para 40).
Para Ganem, essas parcerias público-privadas é uma tendência, mas é fundamental que haja indicadores bem definidos, metas claras e acompanhamento do cumprimento de ambos. “Aparelhos bem geridos, independentemente de ter parcerias ou não, só beneficiam a sociedade.”
Ele lembra que, além da gestão, é importante criar uma estrutura de ensino e de pesquisa. O Hospital do Grajau, por exemplo, foi o que mais incluiu pacientes em um estudo multicêntrico publicado no New England of Medicine sobre o uso de trombolíticos.
Segundo Ganem, o setor privado também aprende com o público. “Me dá um orgulho quando um residente diz que consegue ser mais ágil no hospital parceiro público. Com menos recursos, ele tem que tomar decisões rápidas e, às vezes, no privado, discutimos mais o caso, pedimos mais opinião.”
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