A inteligência artificial está sendo cada vez mais utilizada em diagnóstico, tratamento e reabilitação de pacientes após um acidente vascular cerebral (AVC), principal causa mundial de invalidez ao afastar uma a cada seis pessoas de suas atividades.
A Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), por exemplo, estuda aplicativos para rastrear e prever complicações. Uma delas é a transformação de casos de AVC isquêmico (obstrução dos vasos sanguíneos) em hemorrágico (vazamento do sangue). A partir da coleta de dados de mais de 3 mil pacientes de diversos centros brasileiros e um americano (Columbia University), a pesquisa se tornou referência em vários países e foi premiada pela Academia Brasileira de Neurologia.
Outro estudo aborda a complicação de isquemia cerebral tardia em pacientes com hemorragia subaracnóide (condição geralmente associada a aneurismas cerebrais que se romperam). “A ideia é que esses dados (pressão, temperatura, frequência cardíaca, alterações laboratoriais e dados de doppler transcraniano) gerem um modelo que nos alerte com dias de antecedência sobre risco de complicação”, afirma o pesquisador João Brainer, coorientador do programa de Pós-Graduação em Neurologia e Neurociências da Unifesp. A universidade pesquisa ainda, de forma inédita no mundo, a identificação da disfagia (dificuldade de engolir alimentos) a partir do reconhecimento da voz.
Essas pesquisas tentam minimizar dramas como o da faturista Sandra Schulze, que teve um AVC isquêmico em setembro de 2013. Depois de uma noite de sono pesado, ela, de 52 anos, caiu assim que saiu da cama. Não conseguiu mais se mexer, com o braço esquerdo frio e paralisado. Foram três dias na UTI, 15 de internação em um hospital em Joinville. Ela ainda faz fisioterapia, mas é grata às profissionais que a ajudaram desde o começo no hospital.
A reabilitação dos pacientes, aliás, é o foco de um estudo pioneiro da Fundação Oswaldo Cruz do Ceará com realidade virtual. Usando os óculos que criam uma realidade paralela e orientado por um profissional de saúde, o paciente simula atividades de cotidiano. Cada movimento é captado por sensores, que formam uma base de dados para avaliar e acompanhar a evolução do tratamento. Também será possível quantificar com precisão informações do espaço, velocidade dos movimentos, angulação dos membros e precisões das ações. Essa nova técnica começará a ser validada clinicamente em outubro no Hospital Geral de Fortaleza, que atende mais de 1,9 mil casos de AVC por ano.
Como funciona. Aplicativos, robôs, algoritmos e softwares que configuram a inteligência artificial fazem análises que o ser humano não consegue. Geralmente, os médicos avaliam duas a três dimensões, como o resultado de exame de um paciente ao longo do tempo.
Quando as possibilidades aumentam, o cérebro humano tem dificuldade de processamento. Isso ocorre no caso de variantes genéticas e interação de medicamentos, por exemplo. Aí, a máquina ajuda como reforço ao diagnóstico.
Os sistemas são alimentados com uma “verdade fundamental” – ou um padrão básico a partir do qual as demais decisões são geradas. Se as máquinas são ensinadas que um determinado padrão exibido na imagem é um tumor cerebral, toda vez que for visualizada a mesma anormalidade o sistema irá rotular da mesma maneira.
Mas como elas fazem isso? Essa é uma das questões propostas pelo Centro de Inteligência Artificial (C4AI), parceria entre a Fapesp, a IBM e a USP. Uma das linhas de pesquisa tem relação com “o aprendizado” dos algoritmos. “Os algoritmos conseguem ver coisas que escapam de nós. Queremos saber exatamente como isso acontece”, explica José Krieger, médico, pesquisador do Incor e um dos líderes do projeto.
Outra pesquisa do C4AI estuda a modelagem de AVCs. A partir de eletroencefalogramas (EEGs) do Laboratório de Neuromodulação do Instituto de Medicina Física e Reabilitação do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP, os pesquisadores desenvolveram um sistema de classificação de AVC com técnicas de aprendizado de máquina, i, conjunto de técnicas que podem ser transformadas em algoritmos. Marco Antonio Gutierrez, diretor de TI do Incor, revela que foi utilizada uma base de dados com 200 mil tratados de eletrocardiograma de pacientes. “Depois que os especialistas fizeram os laudos, nós desenvolvemos um algoritmo para aprender a buscar nos tratados as mesmas informações que o especialista procura.”
Casos de sucesso
Avançamos muito nos últimos cinco anos, mas ainda não são todos os hospitais que utilizam o tratamento (com ajuda da inteligência artificial)”, afirma a neurologista vascular Sheila Martins, fundadora e presidente da Rede Brasileira de AVC.
O neurologista Octávio Pontes, professor da Faculdade de Medicina da USP – Ribeirão Preto e coordenador da Rede Nacional de Pesquisa em AVC, afirma que os custos são uma limitação. “É importante a parceria com empresas com produtos em desenvolvimento para incorporar esses avanços em diagnóstico, prevenção, tratamento e reabilitação de pacientes.”
Quem já utiliza os algoritmos contabiliza avanços. O Hospital Israelita Albert Einstein, que usa a tecnologia desde 2019, aponta que alguns benefícios são redução no tempo do atendimento e precisão dos cálculos das áreas de isquemia e área salvável, além da redução da necessidade de ressonâncias magnéticas, uma vez que o exame de perfusão indica as áreas do cérebro que são recuperáveis.
No Hospital de Clínicas de Porto Alegre, como relata Sheila Martins, uma das conquistas é o uso do software de perfusão, capaz de mostrar as áreas do cérebro que já morreram (cor de rosa) e aquelas que estão em sofrimento, mas que podem ser salvas (verde). “Isso é fundamental nos casos em que o paciente chega tarde ao hospital ou não é possível precisar o momento do início dos sintomas. Isso permite tratar mais pacientes”, afirma.
Nelson Fortes é coordenador da neurorradiologia diagnóstica do Hcor, um dos hospitais pioneiros no uso da tecnologia. Ele ressalta a importância de combinar inteligência humana com a artificial. “A máquina não substitui o ser humano. Ela orienta o clínico”, diz. “Nos casos de AVC, nos quais o paciente está inquieto, o movimento pode gerar um falso positivo.”
Tire suas dúvidas
O que é um AVC
É quando os vasos sanguíneos que transportam oxigênio e nutrientes ao cérebro se rompem ou são bloqueados por um coágulo. Essa interrupção pode ter duas razões: um entupimento (AVC isquêmico) ou um vazamento nas artérias (hemorrágico). Popularmente denominado de derrame, o AVC responde por 100 mil mortes por ano no Brasil.
É possível remediar?
Procure o médico no início súbito de qualquer sintoma. Um rápido atendimento diminui o risco de sequelas. Tempo perdido é cérebro perdido. Ligue imediatamente para o número 192 (do Serviço de Atendimento Médico de Urgência, Samu) ou para o serviço de ambulância de emergência para que possam enviar o atendimento a você.
Os sintomas
Fraqueza ou formigamento na face, no braço ou na perna, especialmente em um lado do corpo; confusão, alteração da fala ou compreensão; alteração na visão (em um ou ambos os olhos); uma alteração do equilíbrio, coordenação, tontura ou alteração no andar normal da pessoa; dor de cabeça súbita, intensa, sem nenhuma causa aparente.
Como é o tratamento
Alguns softwares diferenciam os dois tipos de AVC, além de revelar as áreas do cérebro comprometidas e qual a artéria envolvida no processo. A cada minuto perdido em um AVC agudo morrem 2 milhões de neurônios. “Graças a esses equipamentos hoje temos a oportunidade de tratamento”, diz o neurologista João Brainer, da Unifesp.
E a inteligência artificial?
Ela não faz parte da maior parte da realidade hospitalar brasileira. A Fundação Instituto de Pesquisa e Estudo por Diagnóstico por Imagem, gestora da radiologia e diagnóstico por imagem no setor público, está presente em 76 hospitais. Desse total, apenas oito contam com a tecnologia de inteligência artificial, sete em São Paulo e outro em Goiás.
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.
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