Ditadura tentou desindexar salário, como quer Guedes, mas fracassou

(FOLHAPRESS) – Politicamente insustentável, mesmo num regime militar nos moldes brasileiros. Foi dessa maneira que o ex-ministro Mario Henrique Simonsen classificou a tentativa do governo Castelo Branco (1964-1967) de proibir a correção dos salários no Brasil pela inflação passada.

Proposta nesse sentido faz parte de um estudo do governo obtido pela Folha na semana passada. Trata-se de um pacote de mudanças nas contas públicas, que inclui o fim da correção do salário mínimo e dos benefícios previdenciários pelo INPC (Índice Nacional de Preços ao Consumidor) do ano anterior. Eles passariam a subir de acordo com a expectativa ou a meta de inflação.

Como descreveu Simonsen, a política salarial de Castelo Branco foi “violentamente criticada” por se basear numa fórmula que comprimia o poder aquisitivo dos trabalhadores sempre que se subestimasse a taxa de inflação nos 12 meses seguintes ao dissídio ou acordo coletivo, o que havia ocorrido em 1965 e 1966. O resultado, na época, foi a revisão da lei salarial em 1968.

Regras nesse sentido também são realidade em outras economias. Na zona do euro, mais da metade dos trabalhadores do setor privado está em países em que a inflação não desempenha um papel formal na fixação dos salários, apesar de ser um fator importante nas negociações, segundo relatório do Banco Central Europeu.

Regimes formais de indexação aplicam-se a países com 18% dos trabalhadores na região. Na maioria dos casos, com reajustes baseados nas perspectivas de inflação do governo, como ocorre na Itália.

O salário mínimo é automaticamente indexado à inflação passada em economias que respondem por menos de 20% do mercado de trabalho, entre elas, a França, e o peso desse piso nas remunerações totais é relativamente menor do que no Brasil. Apenas 3% dos trabalhadores estão em países com todos os salários indexados automaticamente, como Bélgica e Luxemburgo.

Nos EUA, o piso nacional é reajustado por decisão do Congresso, sem uma regra específica.

No Brasil, os salários acima do piso são negociados livremente, com cerca de 60% dos acordos coletivos obtendo ganhos iguais ou acima da inflação, segundo o dado mais recente do Dieese.

Se a regra de correção pela meta tivesse sido aplicada desde 2002, o salário mínimo, atualmente em R$ 1.212, estaria em R$ 502, segundo cálculo do Made (Centro de Pesquisa em Macroeconomia das Desigualdades da Universidade de São Paulo).

GANHO REAL

Uma proposta de correção do salário mínimo (mas não das aposentadorias) pela meta de inflação faz parte de um artigo dos economistas José Luis Oreiro e Julio Fernando Costa Santos. Eles consideram, no entanto, a incorporação de um ganho real, pelo aumento da produtividade medida pela média móvel de cinco anos do PIB per capita.

Oreiro não descarta que parte de sua proposta tenha sido incorporada ao estudo do governo federal, mas afirma ser contra uma correção que não gere um ganho real para o trabalhador. Para ele, o governo quer reeditar o arrocho salarial do Paeg (Plano de Ação Econômica do Governo), lançado em 1964.

“Uma regra de reajuste do mínimo que não preveja crescimento real é uma grande injustiça com os trabalhadores, porque os ganhos de produtividade não vão ser apropriados pelos salários, mas vão ser apropriados pelos lucros”, afirma o professor do Departamento de Economia da UnB (Universidade de Brasília).

O professor Rodrigo Patto Sá Motta, do Departamento de História da UFMG, também afirma que a regra pode reeditar o arrocho salarial promovido nos anos 1960. Na época, com objetivo principal de controlar a inflação. Agora, visando principalmente os gastos da Previdência.

“Chama a atenção que o Paulo Guedes [ministro da Economia] vá buscar uma política salarial que é claramente inspirada na ditadura, quando o salário mínimo teve uma perda de valor real brutal.”

De Vargas ao Plano Real No Brasil, quase 30 anos após o Plano Real ter limitado a ampla indexação da economia promovida durante a ditadura militar, mecanismos de correção automática de preços continuam a alimentar a inflação. Seja por decisão do setor público, seja por preferência de agentes privados.

Tarifas de serviços básicos, como energia elétrica, saneamento e transporte público, têm como referência índices de preços. Aluguéis são corrigidos anualmente pela inflação passada. Títulos públicos indexados à inflação estão entre os preferidos dos investidores. E a principal regra fiscal do país, vista como uma medida econômica de cunho liberal, tem como base o índice de preços ao consumidor.

A indexação é um dos principais fatores que explicam a inércia inflacionária, ou seja, o movimento que faz com que a alta dos preços se perpetue e seja repassada para toda a economia.

Proibida por um decreto de Getúlio Vargas em 1933, se tornou uma política de governo a partir da gestão Castelo Branco e um dos principais motores da espiral inflacionária nas décadas seguintes.

Em 1994, a lei do Plano Real restringiu sua aplicação ao mercado de trabalho, ao mercado financeiro e a contratos com prazo não inferior a 12 meses, colocando fim aos gatilhos diários ou mensais.

Em seu livro sobre os 30 anos de indexação que antecederam o Real, o ex-ministro Mario Henrique Simonsen afirma que nenhum país desenvolveu um sistema de correção monetária tão sofisticado como o adotado até então pelo Brasil, com um mecanismo que foi incorporado explicitamente à política econômica.

Para Simonsen, o que promoveu a inércia inflacionária não foi a permissão de regras de correção automática dos valores pela inflação passada, particularmente no caso dos salários, e sim a sua compulsoriedade.

Mateus Boldrine Abrita, autor de diversos trabalhos sobre o tema e professor da Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul, afirma que uma nova rodada de desindexação da economia brasileira depende de alguns fatores, como manter a inflação baixa por muito tempo e buscar índices de correção baseados em médias de prazos mais longos. Para isso, é necessário também que o Estado dê o exemplo.

“A gente chegou ao cúmulo de indexar o gasto público à inflação passada com o teto de gastos. Em países com tradição de inflação controlada, os agentes geralmente estão olhando para a frente, para a meta do banco central e as expectativas. Naqueles que têm histórico de inflação alta, excesso de indexação e conflito distributivo, você olha para o passado, e isso alimenta a inércia inflacionária”, afirma o economista, que é favorável à regra de correção do salário mínimo que leva em conta a reposição da inflação mais a variação do PIB.

‘INFLAÇÃO DO ALUGUEL’

Em seus relatórios mais recentes, Banco Mundial, FMI (Fundo Monetário Internacional) e BIS (o banco central dos bancos centrais) alertam para os riscos de uma indexação maior da economia, diante da demora em controlar a atual onda inflacionária global, o que pode dificultar o trabalho dos bancos centrais.

Já o Banco Central Europeu afirma que, a menos que o choque recente de preços conduza a um aumento significativo da indexação salarial, uma transmissão generalizada e automática parece bastante improvável diante dos mecanismos atuais. A instituição também destaca que o período de baixa inflação visto após a crise de 2008/2009 reduziu o grau de indexação das economias da região.

No Brasil, também houve avanços nos últimos anos, como a tentativa de desatrelar vários contratos da correção pelo IGP-M, da FGV, índice fortemente influenciado por câmbio e preços no atacado. O governo não vende mais títulos públicos com esse indexador. Diversas tarifas passaram a ser corrigidas por índices baseados em custos setoriais.

A própria FGV lançou um índice de variação de aluguéis residenciais, que pode substituir o IGP-M como “índice de inflação do aluguel”, e muitos desses contratos passaram a ser reajustados pelo IPCA.

A memória inflacionária, no entanto, ainda é um fator que pesa mesmo nas negociações privadas. Apesar do fim da hiperinflação, o índice de preços ao consumidor ficou em 7% ao ano, na média de 1995 a 2021, tendo superado os dois dígitos em quatro ocasiões. O valor é o dobro da meta de inflação deste ano e supera os limites de tolerância estabelecidos desde 2006.

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