LISBOA, PORTUGAL (FOLHAPRESS) – O potencial de disseminação das diferentes linhagens de HIV vai muito além das especificidades biológicas de cada vírus. Particularidades sociais e hábitos culturais das populações influenciam significativamente na disseminação dos subtipos. Por isso, é urgente criar políticas públicas específicas para cada região do Brasil.
As conclusões fazem parte de um novo trabalho, publicado na revista Scientific Reports, do grupo Nature, feito em parceria por pesquisadores brasileiros e portugueses.
Recorrendo a diferentes ferramentas de bioinformática, o grupo analisou um extenso banco de dados de pacientes diagnosticados com o vírus da Aids no Brasil. Os pesquisadores analisaram as informações genéticas dos vírus, bem como dados clínicos dos pacientes.
A partir daí, os cientistas se concentraram na disseminação das duas principais linhagens de HIV no mundo: os subtipos B e C.
Enquanto o B é mais prevalente na Europa e nas Américas, o C é dominante na África do Sul, na Etiópia e na Índia. No Brasil, o tipo B é mais presente em todo o país, com apenas uma exceção: a região Sul, onde o domínio é da linhagem C.
Embora trabalhos anteriores já tivessem feito referência à maior presença do subtipo C nos estados do Sul, o grau de separação regional entre as infecções pelas duas linhagens surpreendeu os autores do trabalho.
“É bem impressionante. É como se houvesse uma parede separando. O subtipo B não consegue se estabelecer no Sul de maneira tão boa quanto o C”, explica o médico Bernardino Geraldo Alves Souto, pesquisador da UFSCar (Universidade Federal de São Caetano).
Nuno Osório, coordenador do trabalho na Universidade do Minho, em Portugal, relata que os cientistas foram então investigar as motivações por trás do domínio do subtipo C no Sul brasileiro.
“A principal hipótese no nosso estudo é que são as condições sociais e comportamentais nas duas regiões que levam a isso: que num caso haja domínio do subtipo B e, no outro caso, domínio do subtipo C”, relata.
A pesquisa indicou que ambas as linhagens atingem cargas virais elevadas quando os pacientes não estão sendo tratados, mas que o tipo C demora mais tempo até manifestar os primeiros sintomas da doença.
Sintomas relacionados à queda da imunidade são tradicionalmente uma importante motivação para que as pessoas procurem se testar para o HIV.
Sem o diagnóstico e a medicação, que pode derrubar a carga viral para níveis de não transmissão, muitos infectados com o tipo C podem passar longos períodos transmitindo o vírus.
Por motivos que ainda não estão totalmente esclarecidos para os cientistas, este e outros trabalhos indicam que o subtipo C também tem mais facilidade para infectar mulheres e jovens.
Já o tipo B, por outro lado, parece mais adaptado à transmissão entre homens que fazem sexo com homens.
Na avaliação dos pesquisadores, a cultura de repressão das mulheres, de tolerância com relacionamentos extraconjugais e ainda a persistência de aleitamento materno cruzado, sobretudo em áreas mais rurais, cria o ambiente propício para favorecer a disseminação do subtipo C.
“No Brasil ainda prevalece muito a opressão de gênero contra mulher, principalmente em áreas mais rurais, de cultura mais tradicional, como em muitas partes do Sul. A mulher é muito subordinada socialmente, mas também sexualmente dentro de casa. O poder de negociação sexual da mulher para sua proteção, como pedir o uso de preservativos, é baixo”, diz Bernardino Souto, da UFSCar.
“Há uma certa tolerância velada, de que o homem precisa e deve ter relacionamentos extraconjugais. Isso favorece que o homem traga para dentro de casa e transmita para mulher o HIV”, completa.
Tendo isso em conta, e como o HIV não é um só, os pesquisadores pedem a criação de planos de combate ao vírus que levem em conta as particularidades regionais.
No caso específico da região Sul, o grupo pede também intensificação de testes de rastreio, com especial atenção em mulheres e jovens, além de ações de conscientização sobre os riscos associados ao aleitamento cruzado.
Os pesquisadores destacam ainda o potencial risco associado à disseminação na linhagem C para outras regiões com características socioculturais semelhantes.
“Temos observado que o subtipo C tem conseguido um espaço de entrada na região Norte, na região amazônica”, alerta o professor da UFSCar, chamando a atenção para a dificuldade de acesso a testes e a típica prevalência de aleitamento cruzado em áreas menos urbanizadas.
Para Nuno Osório, da Universidade do Minho, estes resultados identificados entre a população brasileira podem ajudar na formulação de políticas públicas também em outros países.
O cientista português elogiou ainda a qualidade do material disponibilizado pelo Ministério da Saúde brasileiro, e afirmou que o Brasil reúne condições únicas para permitir fazer uma análise comparada entre os diferentes tipos de HIV.
“O Brasil reúne condições para fazer este estudo, para estudar os dois subtipos de HIV mais importantes a nível mundial, que talvez não existam em mais lugar nenhum no mundo. Um mesmo país tem regiões fronteiriças com prevalências diferentes, com o Sul a ser dominado pelo subtipo C e o restante do país pelo B”, explica Osório.
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