TOULOUSE, FRANÇA (FOLHAPRESS) – A França viverá nesta quinta-feira (16) o Dia D de sua controversa reforma da Previdência, apresentada pela primeira-ministra Elisabeth Borne como crucial para as finanças públicas, mas rejeitada pela maioria dos franceses.
É neste dia que a batalha entre o governo do presidente Emmanuel Macron e os parlamentares da oposição, apoiados pela maior mobilização sindical dos últimos 12 anos no país, deve chegar a um desfecho a partir de uma dupla votação do texto –primeiro no Senado e, depois, na Câmara, em meio a um cenário de deterioração e sob ameaça de interdição do debate.
No último sábado (11), a proposta já havia sido aprovada por 195 votos a 112 no Senado. A Casa tem maioria conservadora e é dominada pelo partido Republicanos, com o qual Borne negociou concessões, flexibilizando propostas do texto original.
Nesta quarta-feira (15), a reforma foi submetida a uma comissão parlamentar mista. Composto por sete senadores e sete deputados, o grupo debateu os pontos do projeto ao longo de nove horas, em reunião a portas fechadas, e chegou a um consenso sobre o texto, que agora segue para votação relâmpago nas duas Casas.
Enquanto a aprovação no Senado é dada como certa, há grande incerteza do governo sobre os votos da Assembleia Nacional, onde mesmo os deputados do Republicanos já declararam voto contrário ou abstenção.
Essa tensão elevou as suspeitas de que a primeira-ministra possa recorrer ao polêmico artigo 49.3 da Constituição francesa, que permite aprovação de projetos de lei apresentados pelo governo mesmo sem a chancela parlamentar. Esse recurso já foi acionado dez vezes por Borne desde o início de seu mandato, sempre diante de impasses nas votações de projetos de lei no campo das finanças públicas, e é considerado um instrumento pouco democrático.
Diante da impopularidade da reforma e dos ânimos acirrados nas ruas e entre deputados, da ultradireita à ultraesquerda parlamentar, paira sobre a votação a ameaça de que Borne lance mão do dispositivo que os franceses apelidaram de “número maldito”.
Para Bruno Palier, diretor de pesquisas do Instituto de Estudos Políticos de Paris (Science Po), o governo deve escolher entre seguir o trâmite tradicional e recorrer ao artigo 49.3, que permitiria a aprovação sem o voto dos parlamentares, mas reduziria sua legitimidade democrática.
Caso opte pela imposição da nova Previdência aos franceses, a dupla Macron e Borne ainda terá problemas. “O movimento popular de contestação deve continuar, ainda que sem o mesmo grau de mobilização, mas com novos contornos, o que deve incluir maior radicalização, mais bloqueios e até cortes de energia”, analisa Palier.
Laurent Berger, secretário-geral da Confederação Francesa Democrática do Trabalho (CFDT), uma das principais centrais sindicais do país, considera o recurso controverso um “vício democrático”. “Que o fim da história seja o [artigo] 49.3 é algo que me parece inacreditável e perigoso”, declarou à Radio France.
O sindicalista aponta ainda que o governo se recusa a ouvir os argumentos contrários à reforma. Macron não concedeu, por exemplo, uma audiência às principais lideranças sindicais. Foram elas as responsáveis pela maior mobilização trabalhista da década no país, com uma série de greves e manifestações que paralisaram escolas, transporte público, refinarias e centrais de energia.
Uma das jornadas de protesto, em 7 de fevereiro, levou quase dois milhões de pessoas às ruas de grandes cidades da França. O movimento perdeu força nas adesões, mas cresceu em radicalidade.
Nesta quarta, na oitava jornada de greve e protestos da junta intersindical, confrontos entre policiais e manifestantes ocorreram em Lyon e em Paris, onde os atos concentraram 37 mil pessoas, segundo a polícia, e 450 mil, segundo os sindicatos. De acordo com o Ministério do Interior, os atos desta quarta reuniram 480 mil pessoas, contra 1,7 milhão, na contagem das uniões sindicais.
Nas ruas da capital francesa, ao redor das duas Câmaras legislativas onde o destino da reforma será selado, mais de sete toneladas de lixo se acumulam há 12 dias desde o início da paralisação dos garis. Para completar o cenário de conflitos sociais em Paris, houve quebra-quebra de lojas durante os protestos desta quarta, com ao menos 22 manifestantes presos.
Além de elevar a idade mínima para aposentadoria de 62 para 64 anos até 2030 e de prolongar os anos de contribuição dos franceses para acesso à pensão integral, de 42 para 43 anos, já a partir de 2027, a reformulação também mexe nos chamados regimes especiais –aqueles dedicados a atividades consideradas mais penosas, como as de garis, bombeiros, policiais e enfermeiros, que podem se aposentar antes das demais categorias, teriam a idade mínima elevada de 57 para 59 anos.
A crise sanitária gerou também uma crise política paralela. Prefeita da capital francesa, a socialista Anne Hidalgo tem sido apontada como negligente em remediar a situação com vistas a desestabilizar o governo num momento crítico do trâmite da reforma, considerada peça central da agenda reformista de Macron.
O governo argumenta que a medida é fundamental para evitar o colapso do sistema previdenciário e aponta que a aprovação deve gerar economia de EUR 18 bilhões (R$ 100 bi) até 2030. Mas a resistência à reforma é um caso raro que foi capaz de unir a ultradireita, representada pelo Reunião Nacional, de Marine Le Pen, às siglas de ultraesquerda, como o França Insubmissa, de Jean-Luc Mélenchon.
A tábua de salvação do governo tem sido buscar apoio entre os Republicanos, decisivos nas votações desta quinta. Membro do partido, a senadora Brigitte Micouleau explica que sua sigla geralmente não vota a favor dos projetos de Macron por não considerá-lo parte da direita tradicional francesa. “Mas o Republicanos, que há tempos defende a necessidade de uma reforma deste tipo na França, avaliou que seria uma hipocrisia deixar de apoiar o projeto apenas marcar oposição ao governo”, diz.
Ciente do apelo deste argumento, Borne declarou à Assembleia Nacional na terça (14) que o voto a favor da proposta “não é um voto de apoio ao governo”. Tampouco é possível afirmar que o sim à reforma represente bem os franceses. Segundo o instituto de pesquisa Ifop, enquanto o projeto do então presidente Nicolas Sarkozy em 2010 foi avaliado como “aceitável” por 53% dos franceses, o texto de Borne e Macron alcança apenas 23% de aceitação.
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