Dano psíquico é maior se menina grávida de estuprador mantiver gravidez, diz psicóloga

(FOLHAPRESS) – Quando recebe no consultório meninas grávidas dos seus estupradores, como no caso de Santa Catarina, a psicóloga Daniela Pedroso, 48, vai para o chão com elas e começa a brincar.

“É ludoterapia [psicoterapia voltada para o tratamento psicológico de crianças], como se eu estivesse diante de outra criança com qualquer outra queixa. São meninas que não entenderam o está acontecendo, que foram estupradas”, diz ela.

Há 25 anos no atendimento a vítimas de violência sexual no Hospital Pérola Byington, do governo paulista, Pedroso diz que os danos psíquicos serão mais severos se essas meninas levarem a gestação a termo por falta de acesso a um abortamento seguro e garantido por lei.

Ela diz que o que mais a preocupa hoje são as histórias das meninas que não chegam aos serviços de aborto legal. “São meninas que estão se tornando mães. Crianças tendo crianças.”
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Pergunta: O caso da menina grávida de estuprador e que teve seus direitos violados em Santa Catarina chocou o país e expôs uma sucessão de entraves para fazer valer o direito ao aborto legal. Casos assim são frequentes?

Daniela Pedroso: Atuo nessa área há 25 anos e já atendi cerca de 12 mil casos de violência sexual. Estupros de crianças não são histórias que a gente recebe todo dia, mas aparecem com uma certa frequência. O que mais me preocupa, porém, são as histórias que não chegam, meninas abusadas que estão se tornando mães. Crianças tendo crianças.

Os estudos internacionais mostram que os danos psíquicos serão mais severos se essas meninas levarem a gestação a termo por não terem acesso a um abortamento seguro. A adoção também é mais prejudicial do ponto de vista psicológico do que interromper a gestação.

P.: Por que esses casos não chegam aos serviços de aborto legal?

DP: A população brasileira, de uma forma geral, ainda não sabe sobre o direito ao abortamento previsto em lei. Ela não sabe que não precisa de Boletim de Ocorrência ou de alvará judicial para fazer a interrupção. A gente está falando de um Brasil com mais de 17 mil meninas com menos de 14 anos estupradas por ano. Só 10% dos casos buscam ajuda. As pessoas precisam ser informadas de que os serviços existem, que é só ir até o SUS com o seu cartão e que basta a palavra da mulher.

P.: É comum essas meninas chegarem aos serviços com a gestação mais avançada?

DP: Sim. Porque não elas não têm conhecimento do seu próprio corpo. Não sabem que aquilo que sofreu foi um abuso sexual. Atendi uma vez uma menina de dez anos que chegou grávida ao serviço. Ela estava no banho e viu sair leite do seio e gritou pela mãe. Foi aí que ela conseguiu contar para a mãe que tinha sido estuprada pelo padrasto. Estava grávida de cerca de 20 semanas.

P.: Como é o atendimento psicológico dessas meninas?

DP: É sentar no chão e brincar com elas. É ludoterapia, como se eu estivesse diante de outra criança com qualquer outra queixa. O trabalho da psicologia é acolher essas meninas, dar voz ao sentimento delas. São meninas que não entenderam o está acontecendo, que foram estupradas. Tem toda a questão da vulnerabilidade delas.

P.: O que mais te chocou nesse caso de Santa Catarina?

DP: Foi lembrar de tantas outras crianças que já atendi, são seres humanos que não estão prontos para a maternidade, que não têm corpo biológico nem para gestar, muito menos para parir. Isso me choca e está me deixando duas noites sem dormir.

A gente também não está falando dos danos psíquicos para essa menina. Ela foi estuprada, se descobriu grávida, sofreu pressão pela manutenção da gestação, foi afastada da mãe. Estão banalizando o estupro em nome da interrupção da gestação.

P.: O caso expôs uma série de condutas equivocadas, do hospital, do Ministério Pública e da Justiça. O que leva todos esses entes a não cumprir o que é previsto em lei?

DP: Eu fiquei pensando muito no julgamento em cima da médica da equipe do hospital. A gente está falando de uma profissional que está dentro de uma instituição e que tem regras e normas para cumprir, não tem liberdade. As pessoas entraram numa de julgar e eu acho complicado. A gente está falando também do emprego dessas pessoas.

Um ponto que eu não vi discutido é que a norma técnica fala que é [permitida a interrupção da gestação dos casos previstos em lei] até em 22 semanas ou peso fetal inferior a 500 gramas. Uma menina de dez anos dificilmente terá um feto com mais de 500 gramas. Ali teria dado para resolver essa questão.

P.: Após 25 anos de trabalho nessa área, qual a sua avaliação?

DP: Houve muitos retrocessos. A gente vê a burocracia aumentando, novas normas técnicas sem amparo em evidências. Todas as semanas eu me deparo com mulheres vítimas de violência sexual que fizeram um périplo para chegar até aqui. Os postos de saúde ainda as mandam para a delegacia. E elas ainda são tratadas desrespeitosamente também por mulheres. Vejo que as pessoas não praticam empatia. Têm essa concepção desde a Idade Média de que a mulher mente, fantasia. Mas elas têm que imaginar que uma mulher não chega a um serviço de saúde desconhecido contando uma mentira, inventando uma violência sexual.

P.: Durante o governo Bolsonaro, o Ministério da Saúde editou novas portarias com entraves ao acesso aos serviços de aborto legal. Qual o impacto disso na prática?

DP: É para desestimular o trabalho. Lembro que depois de uma delas, em 2020, as pessoas que tinham passado pelo serviço ligavam aqui e perguntavam: “agora que mudou a lei vocês vão ter que contar o meu caso para a polícia?” Misturar o papel da polícia com o da saúde é muito prejudicial para essas mulheres, acabam empurrando-as para o abortamento clandestino e inseguro, aumentando a mortalidade materna.

P.: Ainda acontece muito de as mulheres terem que sair de suas cidades para conseguir acesso a um serviço de aborto legal?

DP: A gente recebe muitas mulheres do interior de São Paulo. De outros estados, deu uma diminuída. Mas às vezes ainda acontece de uma mulher precisar sair lá da região Norte para interromper uma gestação em São Paulo. É muito duro você ainda ouvir que a mulher vítima de violência sexual procurou um posto de saúde para fazer o teste de gravidez e, ao ter o resultado positivo, foi orientada a fazer o pré-natal e não recebeu nenhuma informação sobre o abortamento legal. A gente ainda precisa informar muito, falar muito, fazer muito barulho.

P.: Uma questão que ainda divide muitas opiniões é a interrupção da gestação após as 22 semanas. Embora não haja estipulação de prazos pela lei, uma norma da Ministério da Saúde coloca esse limite. Isso é um entrave?

DP: Sim, bagunça bem. A OMS [Organização Mundial da Saúde] publicou recentemente uma diretriz em que não estabelece limite gestacional para abortamentos previstos em lei. Mas é uma questão de foro íntimo do médico. Não podemos exigir que todo mundo faça. O aborto legal ainda causa muito temor aos profissionais de saúde, eles não são treinados para isso.

P.: Depois de atender tantos casos escabrosos, a sra. consegue ir para casa todos os dias e se desligar do trabalho?

DP: Desde que eu entrei aqui, com 22 anos, recém-saída da faculdade, para fazer um estágio, eu coloquei uma coisa para mim: que no fim da jornada de trabalho, o problema ficaria na porta do hospital e eu o pegaria no dia seguinte. Em geral, eu consigo. Mas não consigo em dias com casos como esse da menina de Santa Catarina.

São histórias terríveis que te levam a refletir o que é ser mulher neste país, que não pode vestir a roupa que a gente quer, não pode sair na rua na hora que quiser. As crianças não são estupradas num beco escuro na rua. Elas são estupradas dentro de casa pelo pai, pelo padrasto, pelo tio, pelo avô, pelo irmão.

Daí a importância da educação sexual. Se a gente explica para aquela menina que existem toques que não são permitidos, no primeiro que acontece, ela vai contar para alguém que confia. Mas a gente está falando de um país que confunde educação sexual com ensinar as crianças a fazer sexo.

RAIO-X
Daniela Pedroso, 48
Possui graduação em psicologia pela Universidade Presbiteriana Mackenzie e mestrado em saúde materno infantil pela Universidade de Santo Amaro. É psicóloga do Núcleo de Violência Sexual e Aborto Previsto em Lei do Centro de Referência da Saúde da Mulher – Hospital Pérola Byington e membro do Grupo de Estudos sobre Aborto (GEA) e do Núcleo de Sexualidade e Gênero do Conselho Regional de Psicologia de São Paulo (CRP/SP).

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