(FOLHAPRESS) – O som é da colher raspando no pratinho fundo. “Tô dando almoço pro nenê, mas podemos conversar sim”, avisa a diarista Iraci Ferreira da Silva, 45, antes de contar à reportagem como está sendo sua busca por uma vaga de creche pública em Curitiba para Benjamin José, seu terceiro filho.
Com 9.500 crianças de 0 a 3 anos na fila de espera por uma vaga em creche na cidade, os principais pré-candidatos à Prefeitura de Curitiba buscam apresentar propostas para o problema, que também acomete outras capitais pelo país. Na Defensoria Pública do Paraná, no ano passado, foram mais 250 ações individuais para buscar obrigar o Executivo municipal a oferecer atendimento.
“Meu nenê tem um ano e meio. E ele tem que ficar com a minha mãe, que já tem 73 anos, quando eu preciso trabalhar na panificadora”, explica Iraci, que geralmente faz faxinas para ganhar dinheiro, exceto terças e sextas-feiras, quando trabalha em uma panificadora comunitária.
Quando ela faz pães, o menino precisa ficar com a avó. “A gente mexe com forno, né? E ele é muito agitado, não para um minuto. Às vezes passa o dia todo sem dormir nada. É um serelepe”, conta a mãe.
Em dia de faxina, Iraci geralmente consegue levar o pequeno junto com ela, mas precisa fazer adaptações. Na diária em Araucária, município na região metropolitana de Curitiba, ela prefere dormir no serviço com o filho, para pegar o ônibus de volta para casa só no dia seguinte.
“A diária é numa área rural e o ônibus é demorado. Levo três horas para ir e outras três horas para voltar. Então, eu acabo ficando lá no serviço para não judiar dele. E a gente volta para casa no outro dia”, explica ela, moradora do bairro Sítio Cercado, na região sul de Curitiba.
O pai de Benjamin José mora distante, em outra cidade da região, e “ajuda a cuidar do nenê no final de semana”, segundo Iraci. Em dia de semana, ela entende que o ideal seria deixar a criança em uma creche pública. “Tem uma que fica a duas quadras de onde eu moro”, conta ela, mas a espera por uma vaga já dura quase meio ano.
No PNE (Plano Nacional de Educação) aprovado em 2014 pelo governo federal para vigorar por dez anos, a Meta 1 determinava a ampliação da oferta de educação infantil em creches até atingir ao menos 50% das crianças de até 3 anos. O PNE chegou ao fim no mês passado, mas não atingiu a meta.
O governo federal observa que, embora ela não tenha sido cumprida, o acesso à educação infantil avançou nos últimos 18 anos. Para a faixa etária de 0 a 3 anos, a cobertura aumentou de 17%, em 2004, para 37%, em 2022.
No Painel de Monitoramento do PNE mantido pelo Idep (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira), autarquia vinculada ao MEC (Ministério da Educação), os números de 2022 são os mais recentes. Nele, consta que, entre os 26 estados brasileiros mais o DF, apenas São Paulo atingiu a meta da educação infantil, com 51,6% de atendimentos a crianças até 3 anos. A pior situação foi registrada no Amapá, com 10,2%.
A educação deve estar no topo da lista de preocupações dos eleitores que vão às urnas pelo país em outubro, mas costuma ser tratada de modo lateral nos debates, com propostas evasivas e promessas que não se concretizam.
Pesquisa do Datafolha de dezembro mostrou a área empatada com a segurança em segundo lugar como o principal problema do Brasil, com 10% das menções espontâneas pelos entrevistados. O item mais citado na ocasião foi a saúde, com 23%.
Em junho, projeto de lei foi enviado pelo presidente Lula ao Legislativo para definição de um novo Plano Nacional de Educação, que vigore até 2034. Nele, a meta de atendimentos para crianças de até 3 anos subiu para 60%. A proposta ainda está sendo debatida pelo Congresso.
Procurado, o MEC não explicou se possui os dados das capitais, informando apenas os números estaduais. Em Curitiba, a prefeitura afirma que cumpriu a meta do PNE, atendendo 55,6% da demanda.
Há uma meta local, contudo, que é mais ousada. Um PME (Plano Municipal de Educação) que entrou em vigor em Curitiba em 2015, um ano após o PNE, mira a ampliação da oferta de educação infantil em creches para atender 100% das crianças de 0 a 3 anos até junho de 2025.
Secretária da Educação em Curitiba, Maria Sílvia Bacila diz que a atual gestão, do prefeito Rafael Greca (PSD), obteve um “aumento expressivo” no número de vagas. “De 2017 a 2024, nós ampliamos 14 mil vagas no atendimento das crianças de 0 a 3 anos, na rede própria e também vagas contratadas em creches particulares”, calcula ela.
A própria existência de uma fila de espera, contudo, é considerada inaceitável por promotores de Justiça, que há dez anos cobram uma solução na Justiça. “Em 2014 foi ajuizada uma ação civil pública pelo Ministério Público postulando a condenação do município. Na época, essa fila de espera ultrapassava 10 mil crianças”, afirma a promotora Beatriz Spindler.
O processo foi julgado improcedente na primeira instância, mas está sob recurso no Tribunal de Justiça. “Educação infantil é direito fundamental de todas as crianças. Nos primeiros anos de vida é o momento do desenvolvimento neurolinguístico, das habilidades socioemocionais. E, aqui em Curitiba, entra ano sai ano e é um direito que não se efetiva”, diz ela.
APELO À JUSTIÇA
O problema da falta de vaga em creche é algo visto diariamente na Defensoria Pública do Paraná, que, só no ano passado, ingressou com 258 ações individuais na Justiça para tentar obrigar a prefeitura a fornecer uma vaga.
“Tem algumas coisas que todo dia chegam na Defensoria, e vaga em creche é uma delas. São pais que não conseguiram vaga, está demorando, ou a vaga ofertada é inadequada, longe de casa”,
Segundo o defensor Fernando Redede, é comum as pessoas procurarem primeiro o Conselho Tutelar, que, por sua vez, indica o caminho da Defensoria. “Quando a pessoa procura a Defensoria é a última porta, o último recurso. Nem todo mundo tem tempo e condições para se dedicar a isso”, observa.
Ao ser questionado sobre os desdobramentos das ações individuais propostas à Justiça Estadual, ele diz que é “muito raro” uma sentença contrária à demanda. Porém pedidos por parte da prefeitura de suspensão de liminares favoráveis à Defensoria tem acontecido cada vez mais.
“É difícil explicar juridicamente este tipo de recurso. Uma coisa é o Estado recorrer contra uma liminar que suspendeu a licença ambiental para construção de uma represa ou um pagamento de adicional para 10 mil servidores. Aqui o recurso tem sido utilizado para suspender vaga em creche, obtida em liminar. E isso acontece em larga escala, e não só em Curitiba”, afirma ele.
O defensor diz que o assunto é uma “demanda histórica, que atravessa as gestões”.
NOVAS LEIS
Duas legislações envolvendo o tema da primeira infância entraram recentemente em vigor. Uma delas é a lei 14.851/2024, sancionada em maio pelo presidente Lula, que estabelece a obrigatoriedade do município de fazer a busca ativa de todas as crianças de 0 a 3 anos e divulgar com transparência a lista de espera.
Questionada pela Folha, a secretária da Educação, Maria Sílvia Bacila, responde que a Prefeitura de Curitiba mantém comunicação direta com os pais que estão na fila.
“Fica transparente para os pais. Eles sabem como estão neste processo. E a gente sabe onde precisa trabalhar para ofertar essas vagas”, resume Bacila.
Ainda segundo a secretária, a fila é formada a partir de uma pontuação ligada a critérios de vulnerabilidade. “A criança que tem um pai preso ou usuário de drogas, por exemplo, tem prioridade na fila. Mas, de um modo geral, crianças mais expostas são atendidas praticamente de imediato”, explica ela.
Outra recente norma federal sobre o tema é a lei 14.880/2024. Sancionada no mês passado, ela mexe no marco legal da primeira infância para determinar que serviços de atenção precoce sejam realizados “em espaços físicos adequados ou adaptados às necessidades da criança, que contarão com infraestrutura e recursos pedagógicos e de acessibilidade apropriados ao trabalho a ser desenvolvido, bem como com profissionais qualificados”.
Segundo a promotora Spindler, a nova lei “pressupõe que essas crianças estejam matriculadas em creche”. “Se essas crianças não estiverem em creche, eu não tenho como cumprir com essa nova lei. Fica uma legislação sem aplicabilidade”, observa ela.
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