EDUARDO MOURA
SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Esta é uma breve história de como Mauro virou Oruam. De como Oruam virou projeto de lei. E de como o projeto de lei virou música.
Música, fama, dinheiro -tudo isso é passageiro e não enche os olhos de Mauro. O que ele quer é estar com a sua família completa, coisa que nunca teve.
O pai, Márcio dos Santos Nepomuceno, conhecido como Marcinho VP, está preso desde 1996. Mauro, o quarto filho, nasceu meia década depois. Ele é conhecido como Oruam, um dos rappers brasileiros mais ouvidos atualmente, e expressou esse desejo numa entrevista ao podcast PodPah.
Hoje, o anagrama do nome de batismo do artista carioca não sai do noticiário. Primeiro porque é um dos mais populares da nova geração no Brasil -nesta quinta, virou manchete ao ser detido após fazer uma manobra perigosa e tentar escapar de uma blitz no Rio de Janeiro.
Segundo, porque seu nome virou o apelido de um projeto de lei que vem sendo replicado em dezenas de casas legislativas, é a chamada lei anti-Oruam. Assim que saiu da prisão, após o amigo e parceiro musical Orochi pagar a fiança, de R$ 60 mil, Oruam anunciou o álbum “Liberdade”.
O novo trabalho, já no streaming, tem 15 músicas, entre elas, uma intitulada “Lei Anti-Oruam”. A capa do álbum é ilustrada por uma foto de Oruam e sua família -mãe e irmãos vestem camisas com a foto de Marceinho VP, com a palavra “liberdade” em negrito. O próprio Márcio aparece na fotografia, digitalmente inserido. O clipe da faixa “22 Meu Vulgo”, lançado à meia-noite desta sexta, já tem quase 800 mil visualizações.
Nas redes, houve quem elogiasse o artista, chamando de “mito” ou exaltando sua aura anti-sistema, mas também houve quem criticasse o lançamento do disco logo após a prisão.
No início da tarde desta sexta, o rapper postou em suas redes um vídeo de um vídeo de um carro branco fazendo manobras perigosas em frente a uma viatura de polícia militar do Rio de Janeiro. A cena é filmada por alguém próximo dos veículos em movimento, com boa estabilização de imagem.
A cena postada se assemelha a imagens obtidas pelo G1. Segundo apuração do portal, o carro que faz “cavalo-de-pau” em frente à polícia teria Oruam no volante. Imagens da TV Record, também condizentes com o vídeo postado pelo artista, mostram o rapper sendo retirado de perto do carro por um policial.
Enquanto uma série de seguidores o elogiou e postou comentários como “GTA RJ”, outros levantaram suspeitas de jogada de marketing. Na noite de ontem, Oruam postou um story agradecendo ao perfil de entretenimento Choquei. “Queria agradecer à página Choquei que postou todos os vídeos de hoje, sem manipular nenhuma postagem. Sigam eles lá, família”, escreveu.
De acordo com reportagem do UOL, Oruam admitiu nos bastidores que fez “besteira”. O jovem ficou calado durante todo o depoimento à polícia, que diz que não identificou sinais de embriaguez nele.
Quem deu início à maré de PLs anti-Oruam foi a vereadora Amanda Vettorazzo, do União Brasil de São Paulo. Os projetos propõem que seja proibido o uso de recursos públicos para a contratação de artistas que façam manifestações consideradas de apologia ao crime e ao uso de drogas em suas músicas ou apresentações.
Atualmente, foram apresentados projetos em pelo menos 12 capitais brasileiras, seis estados, além da Câmara dos Deputados e do Senado Federal.
Foi no Parque Taipas, comunidade bem ao norte da capital paulista, que Vettorazzo tirou sua inspiração para a proposta. Na época, ela não era vereadora, mas já atuava como coordenadora nacional do Movimento Brasil Livre, o MBL. Ela conta que visitava o local em quase toda data comemorativa, acompanhando ações de uma ONG que atua em comunidades periféricas.
Lá morava um garoto que hoje deve estar na faixa dos 14 anos, ela diz, bastante envolvido nas atividades, como o jiujitsu. Com o tempo, não encontrava mais o menino em suas visitas, até que depois topou com o garoto por acaso. “Ele me disse ‘tia, eu não quero mais fazer esporte, não. Eu quero ser MC'”, afirma Vettorazzo. Dentre os artistas que o menino afirmava admirar, estava Oruam, que, no ano passado, ficou célebre para um público maior por ter defendido a liberdade de seu pai durante um show no Lollapalooza.
“Isso me preocupou muito. Eu não posso proibir ele de ouvir uma música, não sou mãe dele nem mãe de ninguém”, diz a vereadora. “E também não posso proibir o Oruam, por exemplo, de fazer show aqui [em São Paulo].”
Ela então explica o porquê de mirar nos eventos com dinheiro público. “Por exemplo, ele fez um show aqui em São Paulo, numa casa chamada Vitrinni, uma casa cara, na Vila Olímpia. Ele [o jovem do Parque Taipas] não teria condições financeiras de ir nesse show. Mas numa Virada Cultural, num evento público, ele teria condição de ir.”
“Não acho que a gente pode deixar que os nossos jovens sejam influenciados por artistas que façam apologia e que, no show, enalteçam o Comando Vermelho, o crime organizado”, diz Vettorazzo.
Oruam não ficou calado diante da ofensiva legislativa que leva seu nome. Gravou vídeos chamando a vereadora de “doente mental” e insinuando ameaças veladas com frases como “se não, você vai conhecer o capeta”. O resultado foi uma enxurrada de ameaças, feitas por fãs, inclusive de estupro, à vereadora, que registrou um boletim de ocorrência e agora anda escoltada.
Para Aline Akemi Freitas, advogada especialista em direito administrativo na área da cultura e fomento público, o PL promove a censura prévia.
“O gestor tem autonomia para decidir o que ele vai contratar e pode responder por suas decisões de várias formas, se for o caso. Quanto aos responsáveis pelas crianças e adolescentes, entendo que cada um vai tomar a decisão que entenda mais acertada na orientação e criação dos menores”, diz.
Já nos casos das leis de incentivo, em que a escolha da alocação do dinheiro público é da iniciativa privada, como a Rouanet, por exemplo, não pode haver análise subjetiva, diz a advogada. “Cumpridos os requisitos [técnicos], o projeto tem que ser aprovado.”
Para ela, a lei pode limitar o acesso à cultura “especialmente da população que mais se identifica com a realidade que as músicas retratam”, isto é, pessoas de regiões mais pobres da cidade. “Entendo que há uma censura, considerando que parte da população só tem acesso a determinados shows se a prefeitura ou o poder público contrata”, diz Freitas.
Artistas de funk, rap, trap muitas vezes usam o argumento de que músicas acusadas de exaltar o crime, na verdade retratam a realidade das comunidades carentes do Brasil e que, por isso, não são apologia, mas um relato.
“O projeto não proíbe o financiamento público nessas hipóteses de uma mera narrativa, só quando há exaltação, quando há apologia, quando há incentivo à conduta”, diz o deputado Kim Kataguiri, do União Brasil, que apresentou a versão federal do processo na Câmara dos Deputados.
“O que a gente está querendo é a obrigatoriedade do [poder] Executivo fazer a análise de que se naquele projeto que está sendo apresentado há músicas ou manifestações que façam apologia do crime e do uso de drogas. Se o projeto é aprovado, mas no curso do evento é feita essa apologia, aí aplica-se uma multa para o contratado”, diz Kataguiri.
Para Conrado Hübner Mendes, colunista da Folha e professor de direito constitucional da Universidade de São Paulo, o PL viola a liberdade de expressão. “Pode uma banda ir numa unidade de ensino e eventualmente cometer um crime pelo que fala? Claro, qualquer um pode, mas não como requisito prévio, a partir de uma definição genérica de apologia ao crime”, diz.
“Apologia do crime é um tipo penal e isso quem julga é o judiciário”. diz Hübner Mendes. “Recursos públicos estão sujeitos a uma série de regras. Uma vez respeitadas essas regras, não cabe a eles [gestores públicos] julgar se uma música faz apologia ao crime. Não cabe uma lei definir e nem o gestor [público] julgar do ponto de vista moral o que se contrata.”
Segundo Kataguiri, caberia ao poder Executivo analisar se há ou não apologia nas propostas culturais apresentadas. “Quem submeter o projeto à análise pode recorrer na própria instância administrativa dentro do Poder Executivo para que isso seja reavaliado. Se o Poder Executivo continua achando que a apologia e quem recorreu não está satisfeito, ele pode recorrer ao Poder Judiciário”, diz. “Da mesma maneira, se o Poder Público contrata, considerando que não há apologia e há uma quebra desse contrato no curso do evento, tem apologia ao crime, ele exige a multa contratual.”
Para Hübner Mendes, o PL é juridicamente inócuo. “Mas a tentativa de intimidação por meio de lei nunca é inócua”, diz.
Só que antes de enfrentar parlamentares e a opinião pública, o menino Mauro teve que enfrentar a vontade da mãe, que torcia o nariz para músicas com conteúdo violento.
“Até hoje ela não gosta, inclusive meu pai também é contra! Eles sempre blindaram muito a gente, e nos incentivaram a seguir um caminho completamente diferente da realidade que eles viveram”, diz a irmã de Mauro, Débora Gama, que é cantora gospel.
Wallace conheceu Oruam num culto no Complexo do Alemão, quando o garoto devia ter uns 7 anos de idade. Na época, Wallace já era MC Smith, mas Oruam ainda era apenas Mauro.
“Ele sempre foi um cara muito extrovertido, um garoto super povão, andava descalço, mas ele não morou no complexo, ele sempre morou fora da favela, sempre teve uma vida bem melhor, bem tranquila. Porque o pai também não queria que os filhos passassem pelo que o pai passou assim, no geral assim, tá ligado?”, diz.
Há cerca de dez anos, Wallace conta que foi fazer um show na antiga Via Show, uma grande casa de espetáculos na Baixada Fluminense, e propôs levar Mauro. A mãe do menino, evangélica, não deixou. “Ele chorou e tudo nesse dia”, conta Smith.
Em 2017, houve o lançamento de um livro do pai de Mauro, na quadra da Mangueira. Na ocasião, o garoto declamou um poema. “[Nesse dia] eu falei para a mãe dele que ele tinha que desenvolver o poema dele em forma de música. E hoje ele tá aí”, diz.
São seis os filhos de Márcio -cinco dos quais ele teve com a sua xará, Márcia Gama. O casal se conheceu no Complexo do Alemão, onde nasceu Lucas, o primeiro de Márcia e o segundo de Márcio, que foi para a prisão um par de meses depois do nascimento do filho. Depois vieram Débora, Mauro, Vitória e Silas.
Marcinho VP, o pai de Oruam, foi condenado a 36 anos de prisão sob a acusação de ser mandante de dois homicídios, cometidos em 1996.
Apontado como uma das maiores lideranças do Comando Vermelho mesmo após ser preso, Márcio, em entrevista à Record, em 2018, afirmou que nunca foi traficante na vida, e que “vivia de assaltos na rua”.
Ele afirma ter sido um integrante do Comando Vermelho, “apenas mais um”, sem ter exercido cargo de mando. Na mesma entrevista, ele afirma que ajudou Sérgio Cabral nas eleições de 1996. “Ele me enganou direitinho”, disse ao jornalista Domingos Meirelles. Márcio disse que recebeu Cabral em seu camarote durante um showmício de pagode no Complexo do Alemão. “Comeu, bebeu, me elogiou para caramba.”
Os filhos de Márcio cresceram em Jacarepaguá, no Pechincha, bairro de classe média na zona oeste do Rio de Janeiro, e estudaram em escola particular.
O mais velho, Márcio, estudou gastronomia. Lucas cursou direito, Débora arquitetura. Vitória está fazendo enfermagem e o caçula, Silas, de 21, não entrou na faculdade -ainda está se encontrando, mas gosta da área da música, conta a irmã mais velha.
Mauro fez até o segundo ano de psicologia, mas parou depois de estourar na música.
“Sempre tivemos boas oportunidades e fomos ensinados a não desperdiçá-las”, diz Débora, que conta que sempre foi a filha mais comportada.
O primeiro hit foi “Invejoso”, de 2021, que hoje acumula 67,7 milhões de audições no Spotify. O clipe da música tem 193 milhões de views no YouTube. Oruam ficou mais conhecido no mainstream depois de participar do Poesia Acústica, bem sucedido projeto musical que reúne artistas de trap, rap, funk e já lançou 16 álbuns.
Em 2024, furou a bolha de vez. Durante apresentação no Lollapalooza, em São Paulo, vestiu uma camisa com o retrato do pai com a palavra “liberdade” em baixo.
Seus versos vão da putaria ao Deus-pai, do jogo do tigrinho à violência policial.
Oruam é dono do hit “Rolé na Favela de Nave”, indicado ao prêmio de funk do ano no Prêmio Multishow de 2024. Também é autor do trap gospel “Terra Prometida”, em que canta “essa eu fiz pra minha mãe se orgulhar”.
Um de seus sucessos mais recentes é “Oh Garota Quero Você Só Pra Mim”, em parceria com o sertanejo Zé Felipe, marido da influenciadora Virgínia Fonseca, vem sendo chamado de “hit do verão”.
Em “Filho do Dono”, parceria com MC Cabelinho, ele canta “Não tenho medo, eu sou filho do dono/ Maior responsa de sujeito homem”.
Não raro, se veste e se maquia de Coringa, vilão do Batman. Ele também usa a simbologia do numero 22, que corresponde ao arcano do louco no tarô.
No peito, ele carrega uma tatuagem do rosto do pai. Embaixo da costela, ele tem tatuado o rosto de Elias Maluco, morto em 2020, após ter sido condenado como mandante do assassinato do jornalista Tim Lopes. Oruam o chama de tio.
Os irmãos cresceram frequentando a mesma igreja, mas hoje apenas Débora é membro da Assembleia de Deus Bonsucesso de Jacarepaguá, onde faz parte da equipe de louvor. Segundo ela, todo mês os irmãos frequentam os cultos que a cantora realiza em sua casa.
Mauro não foi o primeiro da família a tentar carreira artística. Os mais velhos, Lucas e Débora, começaram a cantar ainda crianças, formando uma dupla gospel. Débora diz que começou aos quatro anos, e Lucas engatou na carreira musical junto com ela alguns anos depois. Assim que Lucas entrou para faculdade, deixou a dupla.
Débora Gama tem números mais modestos nas redes. Seu clipe mais visto de seu canal tem 149 mil visualizações. Um dueto com o cantor Jairo Bonfim, “Ninguém Explica Deus”, tem 2,7 milhões.
A cantora conta que Mauro nunca quis se aventurar no mundo dos melismas e louvores da música gospel. “Ele sempre levou jeito para rima, poema, rap”, diz.
Débora rejeita a pecha de “nepo baby” tanto para ela quanto para o irmão. Ela discorda que a imagem do pai tenha ajudado na carreira artística dos filhos.
“Nunca ouvi ninguém usar esse termo para se referir a mim, até porque não vejo benefício nem vantagem alguma em carregar o nome do meu pai, principalmente da forma negativa como retratam”, diz a cantora e arquiteta.
“Sempre trabalhei, tem anos que eu tenho minha carreira, e nunca usei do nome do meu pai para chegar em lugar nenhum. Depois que Mauro estourou é que passamos a ser mais ‘notados’, e começaram a nos vincular ao nosso pai. Acredito que as pessoas aproveitam do nome dele -que vende- para nos rotular, e isso, de alguma forma, gera curiosidade, que gera visibilidade.”
Leia Também: Piovani nega pedido de desculpas, e Neymar quer R$ 50 mil de indenização