RIO DE JANEIRO, RJ (FOLHAPRESS) – Alicia Garza acordou na madrugada de 14 de julho de 2013 e chorou. No dia anterior, o vigia George Zimmerman havia sido inocentado pelo assassinato do adolescente negro Trayvon Martin, 17, atingido desarmado. Revoltada, Alicia pegou o celular e escreveu nas redes: “Eu continuo surpresa sobre como as vidas negras importam pouco. Pessoas negras. Eu amo vocês. Eu nos amo. Nossas vidas importam”.
Na manhã seguinte, Garza viu que suas publicações haviam sido compartilhadas centenas de vezes, e que a hashtag Black Lives Matter –Vidas Negras Importam– começava a viralizar. Com a ajuda das ativistas Patrisse Cullors e Opal Tometi, o movimento ganharia enorme repercussão internacional nos meses e anos que se sucederam, servindo como combustível para uma série de protestos contra a violência racial.
O primeiro livro de Garza, “O Propósito do Poder” (ed. Zahar), acaba de ser lançado no Brasil. Nele, a organizadora social mistura relatos pessoais sobre sua luta como mulher negra com lições sobre a construção dos movimentos, área na qual atua há 20 anos.
Em entrevista à Folha, ela afirma que, entre todos os acertos, o Black Lives Matter falhou ao hesitar em se envolver com a política tradicional.
Garza entende que o poder é um instrumento indispensável para promover mudanças a longo prazo, e diz que os movimentos sociais precisam deixar o conforto da arena cultural. Mais do que isso, ela argumenta, é necessário buscar alianças com quem ainda não faz parte do seu grupo.
Folha – Por que “O Propósito do Poder”?
Alicia Garza – Eu queria focar nossa energia em mudar as regras que foram criadas contra nós. Às vezes as pessoas enxergam os problemas da sociedade como individuais, como problemas de personalidade, de moralidade, se você é uma pessoa boa ou ruim. Mas não tem nada a ver com isso. Tem a ver com as regras que são feitas, que protegem alguns e deixam outros vulneráveis. Queria centrar o livro em torno do poder, porque é por ele que estamos lutando. Não estamos lutando para as pessoas serem mais legais, melhores.
Folha – Como surgiu a ideia do livro e quando você começou a escrevê-lo?
Alicia Garza – Comecei a escrever em 2017, logo após a eleição presidencial nos Estados Unidos. No início pensei que seria um livro que ajudaria a explicar o Black Lives Matter. Mas, quando comecei a escrever, percebi que o que mais apareciam eram lições sobre a construção dos movimentos. O livro é formado em parte por memórias e em parte por lições sobre organizar, e eu espero que resulte em duas coisas.
Primeiro, que ajude o leitor a se envolver em seu próprio contexto político e histórico. Como eu cheguei onde estou agora, como minhas ideias foram moldadas. E espero que também dê às pessoas um contexto sobre como fazer um trabalho que mude o mundo, o que esperar, o que evitar, e sobre algumas das grandes questões que muitos movimentos ainda estão lidando.
Folha – É possível para os movimentos sociais alterar profundamente a sociedade sem ocupar a política tradicional?
Alicia Garza – Acho que não. No livro falo muito sobre a nossa ambivalência a respeito de mudar a política, e sobre os motivos compreensíveis para isso. A maioria das pessoas entende que existe corrupção na política, e isso não é um fenômeno só dos Estados Unidos. As pessoas não se engajam porque não querem ser corrompidas. Outras vezes não se engajam porque não acreditam que a política possa ser mudada, acham que nada pode ser feito.
O que argumento no livro é que isso é um grande erro. A política é o lugar onde as regras são feitas, onde o governo molda nossas vidas. Se a deixamos intocada, estamos deixando uma enorme arena de poder nas mãos de outras pessoas.
Acho que temos duas perguntas. Primeiro, como reinventamos e reimaginamos uma forma de estar junto que não seja corrupta ou predatória. Segundo, como criamos uma cultura que dê suporte aos valores em torno dos motivos pelos quais temos essas regras em primeiro lugar. No livro falo sobre o sucesso do movimento conservador, e como eles foram capazes não só de mudar a lei, mas de alterar os valores que justificam sua existência.
É muito importante para nós lutar nas duas arenas. Muitas vezes as pessoas ficam confortáveis na arena cultural, em vez de também lutar de verdade para mudar a arena política.
Folha – Nas últimas décadas tivemos um fortalecimento das pautas identitárias, e da ideia de que grupos minoritários devem ocupar a política. Mas é suficiente eleger uma pessoa negra que não esteja necessariamente engajada na agenda racial, ou uma mulher que não esteja realmente envolvida com as questões de gênero?
Alicia Garza – Não. É uma transformação incompleta. Representatividade é ter pessoas que parecem com você em posições de poder. Mas a mudança realmente acontece quando você tem pessoas que dividem os mesmos valores que você, e que lutam por esses valores em posições de poder.
Isso é difícil porque parte do que estamos lidando é ao mesmo tempo uma falta de profundidade quando discutimos as mudanças pelas quais lutamos, mas também uma pressão da oposição, que está reformulando as coisas pelas quais lutamos. De muitos jeitos, ficamos tomados pelos enquadramentos da oposição, em vez de definir por nós mesmos os motivos pelos quais é importante mudar não só a face do personagem da política.
Existe na oposição uma discussão em torno do porquê a política identitária é um exercício fútil, e você vê pessoas na esquerda entrando nesse debate também.
É importante ter pessoas marginalizadas em posições de poder. Mas não é só sobre gênero ou sexualidade, é também sobre valores, e como elas lutam para converter esses valores em leis, do mesmo jeito que a oposição vem fazendo há muito tempo.
Folha – No livro você também fala sobre se aliar com pessoas que pensam diferente do grupo do qual se faz parte. Como é possível se juntar a quem tem objetivos distintos sem perder a essência do seu movimento?
Alicia Garza – Eu falo sobre se aliar com pessoas que são diferentes de você, mas também argumento que é muito importante garantir que os valores estejam alinhados.
Há pessoas reais, experienciando problemas reais, que não se vêem em termos de rótulos, esquerda, ou centro-esquerda, mas como alguém que deseja mudanças. Uma das lições [que podemos aprender] é que ficamos confortáveis em trocar com pessoas com as quais dividimos a mesma linguagem. O que perdemos com isso é que há muitas pessoas totalmente desorganizadas, procurando um lugar, uma casa. Para podermos construir mudanças que possam trazer dignidade, há alianças que podem ser feitas com pessoas que não escolheram um lado.
Não acredito que devamos investir muito tempo tentando mudar quem já está organizado. Precisamos lutar pelo coração e pela mente de pessoas que ainda não têm uma posição, mas que querem viver vidas com dignidade e ser respeitadas. Nossa oposição procura essas pessoas, e as encoraja a escolher um lado. Não demos ainda a nossa melhor resposta para esse dilema.
Folha – Com o fortalecimento das questões identitárias, muitos ativistas cresceram e ganharam seguidores nas redes sociais falando sobre suas próprias experiências. Talvez alguns deles possam ser considerados “ativistas celebridades”, como você chama no seu livro. A partir de que ponto a exploração da própria imagem, a partir de causas relevantes, passa a ser problemática?
Alicia Garza – Eu defendo que existe ativismo e existe organizar. O ativismo supõe que o indivíduo vai agir em relação às coisas com as quais ele se importa. Organizar é sobre juntar as pessoas para atuar coletivamente. É muito importante não confundir os dois.
Para mim existe um novo fenômeno que aconteceu na última década, no qual ativistas estão se tornando celebridades. Não é algo que eu tenha visto antes, tenho 40 anos e estou fazendo esse trabalho por metade da minha vida.
Agora pessoas que tomam uma atitude, como nós, estão aparecendo em programas de televisão, na capa de revistas. Não é ruim ter essa plataforma, mas o que eu pergunto é: quem são as suas pessoas, em defesa de qual comunidade você está usando sua plataforma para chamar a atenção e para que mais pessoas tomem uma atitude. Se você não está fazendo isso, então você está construindo uma marca pessoal, e tentando ser um “entertainer”, o que é um empreendimento diferente de promover mudanças sociais.
Folha – No livro você diz que a interseccionalidade não é uma “olimpíada da opressão”, e que essa rivalidade fica explícita quando alguém fala “sou uma mulher negra, então você não tem nada a me dizer”. No Brasil vemos uma interpretação particular do que se chama de lugar de fala, conceito que muitas vezes é aplicado como um monopólio do discurso, para encerrar um debate. O que você acha desse comportamento? Isso prejudica ou fortalece a política identitária?
Alicia Garza – Eu sempre acredito que o diálogo é importante, e que perdemos profundidade se estamos constantemente excluindo outras pessoas, dizendo que a própria experiência pessoal é a coisa mais importante. No fim das contas, as experiências das mulheres são incrivelmente diversas, e nenhuma mulher fala por todas, embora existam semelhanças que vêm de situações de injustiça. Dialogar é a melhor forma de expor alguém a injustiças que talvez não veja ou experiencie. Mas há um desafio… Mudar de opinião às vezes leva tempo, paciência e humildade.
Folha – Você diz no livro que “hashtags não iniciam movimentos, pessoas sim”. Como o Black Lives Matter conseguiu evoluir de uma hashtag para um movimento de sucesso, com impacto internacional?
Alicia Garza – Um dos grandes componentes do sucesso do Black Lives Matter sempre foram os relacionamentos. Quando começamos, usamos nossas redes de contatos, de organizadores, ativistas, artistas, e as redes sociais para fazer do movimento uma conversa.
Fizemos coisas como reunir pessoas para conversar sobre importantes tópicos que moldavam nossas vidas. Conectamos pessoas que estavam tentando descobrir como montar disciplinas para seus estudantes em torno do antiracismo, ou ajudá-los a entender o assassinato de Trayvon Martin.
Já existiam muitas organizações lutando pelos direitos de pessoas negras. O Black Lives Matter tinha que ser um hub onde essas organizações que já estavam fazendo esse trabalho pudessem se conectar e trabalhar juntas em projetos que aumentassem nossa força e nosso poder.
Acho que a receita secreta para os movimentos é quão bem eles constroem e reconstroem relacionamentos, e quão bem constroem e reconstroem conexões entre pessoas que talvez já tenham muito em comum, mas que nunca perceberam isso.
Folha – Como você avalia o impacto do Black Lives Matter na redução do racismo e da violência policial? Houve um progresso importante nesse sentido desde que o movimento começou?
Alicia Garza – Esse movimento e o carimbo dessa geração nele certamente mudaram não só esse país, mas o mundo. Agora há conversas acontecendo em voz alta que antes eram um sussurro. Conversas sobre violência policial, criminalidade, racismo, supremacia branca, que tínhamos medo de ter. Conversas sobre quem estava sendo deixado para trás na nossa comunidade enquanto estávamos lutando por mais poder. Essas mudanças ainda estão acontecendo, mas acho que o livro ajuda a entender como chegamos onde estamos agora, para entender melhor o que precisamos fazer.
Alicia Garza, 40
Cofundadora do movimento Black Lives Matter, a organizadora social é bacharel em antropologia e sociologia pela Universidade da Califórnia, San Diego. Autora de “O Propósito do Poder”, de 2021, é apresentadora do podcast “Lady Don’t Take No”
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