RIO DE JANEIRO, RJ (FOLHAPRESS) – A doença de Chagas atinge cerca de 1,2 milhão de pessoas no Brasil e mais 6 milhões no restante do mundo. Porém, mais de 70% dos pacientes não sabem que têm a doença, segundo dados da Opas (Organização Pan-Americana da Saúde) apresentados neste mês pela SBC (Sociedade Brasileira de Cardiologia).
Considerada uma doença tropical negligenciada pela OMS (Organização Mundial da Saúde), ela é provocada pelo protozoário Trypanosoma cruzi. Se não tratada, pode afetar o coração, o tubo digestivo, incluindo esôfago e intestino, ou ambos.
Apenas em cerca de 30% a 40% dos casos a doença de Chagas manifesta sintomas, mas mesmo nesses casos eles podem demorar de 10 a 30 anos para surgir, tempo considerado como elevado para reverter uma complicação mais séria, explica o cardiologista Anis Rassi.
“É por isso que o diagnóstico precoce é fundamental, pois a chance de cura se ele for feito nos primeiros dias de transmissão é de até 100%, e diminui progressivamente com o passar dos anos”, explica o médico.
A principal via de transmissão do tripanossomo é pelas fezes contaminadas do barbeiro, um percevejo (gênero Triatoma) que, ao picar o homem, elimina também o parasita nas fezes, mas têm crescido no mundo o número de casos de Chagas por outras vias de transmissão. “A principal delas que temos visto crescer, principalmente na região amazônica, é pela ingestão oral, no consumo de frutas e bebidas como o açaí ou cana-de-açúcar. Nestes casos, a letalidade é maior porque o barbeiro é moído junto, e a quantidade de protozoários que são ingeridos é muito alta”, diz Rassi.
As demais vias de transmissão reconhecidas são pela passagem do parasita da mãe para o bebê durante a gestação, por transfusão de sangue, transplante de órgãos e por acidente laboratorial. No caso de Chagas congênita, o risco apontado no Brasil é de um bebê a cada mil mães com a doença (cerca de 2%).
Foi assim, no entanto, que a costureira aposentada Lourdes Maria de Souza Pilati, 75, descobriu a condição no filho caçula, o contador André Pilati, 45. Lourdes se infectou com Chagas ainda criança –ela não sabe a idade ao certo, mas diz acreditar que por volta dos dois anos de idade–, quando ainda morava com a família em uma casa com chão de terra no interior paulista.
A manifestação dos sintomas dela veio só 18 anos depois, quando completou 20 anos, e foram principalmente intestinais. “Tive que fazer cirurgia e remover 35 centímetros do intestino. O médico disse que eu ia viver só até os 40 anos, mas completei 75 anos e não tenho mais problema de Chagas”, diz.
O caminho, porém, foi árduo. Do momento do seu diagnóstico até a cura definitiva, a costureira diz que passou por pelo menos três médicos diferentes até conseguir realizar o tratamento. “Eu chegava a ficar 12 dias sem ir ao banheiro”, diz.
Após uma conversa com um médico em Santa Cruz do Rio Pardo, município do interior paulista, iniciou o tratamento com as duas únicas medicações existentes (benznidazol e nifurtimox, ambos não se encontram disponíveis na Farmácia Popular), cujos efeitos colaterais podem incluir perda de peso, falta de energia e fraqueza. “Cheguei a pensar: se morrer, pelo menos vou morrer fazendo o tratamento”.
Lourdes conseguiu completar o ciclo de 90 dias da droga. Aos poucos, foi ganhando peso novamente. Teve três filhos, o mais novo deles o único que apresentou o sorotipo de Chagas no sangue. “Até os seis meses de idade, eu levava ele ao Rubião Jr. [Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Unesp] para colherem sangue e fazerem exames, até que ele ‘sumiu'”. Hoje, seu filho é doador de sangue e não é portador de Chagas.
Essa é, aliás, uma das formas mais frequentes de se fazer o diagnóstico de Chagas, lembra Rassi. “Na hora de doar sangue, a sorotipagem para Chagas é obrigatória. O diagnóstico da doença é simples, o exame não é complexo e está disponível nos bancos de sangue. Entretanto, os próprios médicos às vezes desconhecem e não pedem”, diz.
É por esse motivo que a SBC lançou uma nova diretriz para conscientização da doença. De acordo com a nota, divulgada durante o 77° Congresso Brasileiro de Cardiologia, realizado de 13 a 15 deste mês no Rio de Janeiro, a doença é a mais letal dentre as negligenciadas que acometem o coração.
Embora a incidência tenha reduzido consideravelmente nos últimos 40 anos devido a melhorias especialmente nas habitações e controle do vetor, a doença continua apresentando uma alta letalidade. A expectativa da OMS é erradicar a doença até 2050.
Se identificada no início, ainda sem a manifestação dos sintomas, o tratamento é muito mais efetivo, lembra o cardiologista. Porém, o tratamento já quando os sintomas são graves é, em geral, mais custoso e doloroso.
De acordo com Rassi, os casos recentes que têm surgido em países onde não existe o percevejo –como nos EUA, que têm hoje cerca de 300 mil casos registrados, maior incidência fora de país tropical– devem estimular pesquisas para medicamentos e até vacinas contra Chagas. “Infelizmente, sabemos que não há interesse comercial das farmacêuticas em investigar tratamentos para doenças negligenciadas, a não ser quando estas passam a ser um problema de saúde ocorrendo também em países ricos”, relata.
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