Brasileiros aproveitam brecha e importam maconha legalizada para uso recreativo

Brasileiros aproveitam brecha e importam maconha legalizada para uso recreativo | Foto: Divulgação

RAQUEL LOPES E FABIO SERAPIÃO
BRASÍLIA, DF (FOLHAPRESS) – Enquanto o STF (Supremo Tribunal Federal) não decide sobre a descriminalização do porte de drogas para uso pessoal, um mercado paralelo de “maconha legalizada” para uso recreativo tem se desenvolvido no país.

A prática se dá por meio de uma brecha na norma da Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária), que tem liberado a importação de flores de maconha para fins medicinais.
Com o objetivo de testar o processo de importação, e de porte de uma prescrição médica para uso medicinal, a reportagem da Folha obteve na Anvisa a liberação de importação de flor, além do óleo de CBD (canabidiol), substância existente na erva e que tem sido utilizada de forma terapêutica.

A reportagem adquiriu e recebeu 20 gramas de flores da maconha industrializada. Especialistas apontam que ela tem alto teor de CBD, mas baixa quantidade de THC, princípio ativo da erva que dá o “barato” buscado por usuários recreativos.
O processo todo, desde a consulta, autorização da Anvisa, compra, chegada do produto no Brasil, liberação da agência e entrega na residência indicada durou menos de 30 dias.

Essa importação é legal, desde que tenha finalidade medicinal -que é o caso da aquisição feita pela reportagem, para tratamento de ansiedade.

Há relatos reconhecidos pela própria Anvisa, porém, de que usuários recreativos têm conseguido o produto mediante simulação de necessidade medicinal.

Dados da agência mostram que o mercado de produtos à base de cânabis medicinal deu um salto desde 2015, quando teve início o processo de regulamentação da importação. Em 2022 foram 80.258 autorizações concedidas para a importação de produtos com a substância, o dobro de 2021 (40.165) e quase 100 vezes o de 2015 (850 autorizações).

Daniel Meirelles, um dos diretores da Anvisa, disse que a brecha ocorre porque a norma, a RDC 660, fala na permissão de importação de produtos industrializados à base de cânabis sem especificar quais seriam.

Meirelles afirma que a agência reguladora já tem conhecimento sobre o que está ocorrendo, tanto que está trabalhando para evitar que flores sejam importadas para fins recreativos. Uma das propostas avaliadas é a mudança da normativa.

“Pode ser uma proibição mais taxativa à flor de maconha in natura? Pode ser. Pode ser uma proibição da flor in natura industrializada? Isso que a gente está avaliando porque tem aspectos regulatórios e jurídicos envolvidos, em especial a ação civil pública que nos condenou, que diz que nós não podemos fazer diferenciação de produtos à base de cânabis”, afirmou.
Esse tema já entrou na mira da Polícia Federal, que tem feito um trabalho conjunto com a Anvisa para tentar identificar pessoas e empresas que aproveitam a brecha para uso recreativo. Na visão de autoridades, caso seja identificada, a pessoa pode responder por tráfico internacional de drogas.

O STF debate há oito anos a descriminalização do uso de drogas para consumo pessoal no Brasil. Nesse período, países como Uruguai e Canadá tornaram legal e regulado o mercado de cânabis para uso não medicinal.

Bruna Rocha, advogada e presidente-executiva da BRCann (Associação Brasileira das Indústrias de Canabinoides), afirma que há abusos no mercado, especialmente no contexto da importação por causa dessa brecha. A associação, inclusive, já iniciou uma discussão sobre o tema, tendo em vista que o desvio de finalidade atrapalha até mesmo a discussão séria que existe no mercado.

“É bastante impressionante a dimensão que isso tem tomado, diversos ‘players’ encontraram nesse caminho da 660 [norma] a possibilidade de um mercado recreacional, adulto, com um certo manto de legalidade. Então, quando trazemos essa discussão para a indústria, para a frente medicinal, para o uso medicinal, a BRCann se manifesta contrária [à flor e ao uso recreativo]”, afirmou.

Patricia Montagner, médica neurocirurgiã e co-fundadora da WeCann Academy -uma comunidade internacional de médicos e um centro de formação em medicina endocanabinoide-, diz que a flor da cânabis medicinal é entendida como sendo um produto laboratorialmente testado e orientado por um profissional médico. Durante a combustão, restringe muitos subprodutos tóxicos e pode ter variados níveis de THC.

Já a flor comercializada ilegalmente tem altas concentrações de THC, que é o que as pessoas buscam para as alterações psíquicas, além de de não ser testada laboratorialmente. Durante a combustão, ela também libera subprodutos tóxicos e potencialmente cancerígenos.

“A cânabis fumada é ruim para a via respiratória, não sendo entendida como de uso medicinal. Definitivamente o fumo não é uma via medicinal, muito menos o fumo de um conteúdo que a gente não tem conhecimento e não é acompanhado por um profissional médico”, disse.

A médica disse que entende a cânabis medicinal como uma ferramenta terapêutica dentro do tratamento médico. Para ela, a maior barreira atualmente é fazer as pessoas entenderem o que é o uso medicinal e o que é o uso recreativo.

“Medicinal a gente entende como sendo de via oral e é completamente distinta da via inalada. Nossa prioridade deve ser sempre a cânabis para uso medicinal, para a melhora da vida do paciente. Só depois a gente deve abrir a discussão de como fazer um processo recreacional”, afirmou.
“Fazer os dois juntos e misturar os assuntos é muito sensível, delicado e não protege a prioridade do paciente, que geralmente é portador de um problema grave de saúde.”
A Folha pesquisou e entrou em contato com algumas empresas do setor.

Em conversa via WhatsApp com um representante da Medical Hemp Brasil, Jefferson Faria, ele disse, sem saber que falava com uma jornalista, ser “tranquilo” falar com o médico que o objetivo da importação era fazer o uso recreativo, para relaxamento. Até porque, segundo ele, muitas pessoas se medicariam inconscientemente com a cânabis achando que estão apenas fazendo uso recreativo.
Diante da pergunta sobre se a reportagem deveria falar ao médico que a maconha seria usado para fins recreativos, ele respondeu que sim e que o médico era “adepto” e entenderia a a necessidade do paciente.

Ao passar o contato do psiquiatra, ele prosseguiu: “Já está conversadinho com ele, ele já está sabendo de tudo que me falou, tá bom? Mas chega para ele você e fala também, ele é médico, não pode esconder nada. Ele é bem tolerante, é da turma, entendeu?”

A Medical Hemp Brasil representa diversas marcas e se apresenta como uma empresa de especialistas em acolhimento canábico, que orienta tratamentos com cânabis medicinal, indicação e relacionamento com médicos, além de validação de receitas junto à Anvisa.

Em contato posterior, quando Jefferson foi informado que falava com jornalista em processo de apuração de uma reportagem, ele afirmou que quando disse que o médico “era adepto” e “entende exatamente a sua necessidade”, se referia à prescrição medicinal e à necessidade de o médico avaliar a necessidade de utilizar a flor in natura para tratamento medicinal.

Disse ainda que em nenhum momento usou a palavra “recreativo” na conversa e que tem o costume de conversar com os pacientes “na mesma linguagem” em que foi abordado, no sentido de que a pessoa se sinta confortável e acolhida.
“Finalizo frisando que [meu trabalho] é sério, idôneo e com a intenção contínua de melhorar a qualidade de vida das pessoas que buscam o tratamento para curar suas dores e patologias ou para simplesmente reduzir danos físicos ou sociais.”
A Medical Hemp Brasil não fez reparos à postura de seu representante e afirmou que a empresa não pactua com a venda de produtos à base de cânabis com apelo ao uso recreativo, ou com qualquer ilicitude.

A empresa disse, inclusive, que há um mês realizou uma denúncia de conduta antiética na Anvisa e na Polícia Civil de São Paulo sobre práticas aparentemente ilegais que estão ocorrendo no mercado.

“Estamos no mercado desde 2018, e entendemos a importância sobre a regulamentação do tema e temos absoluto compromisso com o uso medicinal da cânabis. Além de empresário nesse novo ramo de atuação, nosso CEO é paciente de dor crônica desde 2017, e ex-paciente oncológico, e tem consciência da importância do acesso dos produtos à base de cânabis medicinal aos seus pacientes”, disse.

No site Universo da Ganja Legal é possível adquirir cursos para fazer compras sem advogados, com respaldo médico e jurídico. No vídeo de propaganda, Matheus Raze se identifica como um maconheiro legalizado.

“Fumar maconha legalmente no Brasil parece piada, né? Até um tempo atrás eu achava que isso não seria possível, mas os tempos mudaram. Hoje em dia é totalmente possível você largar aquele prensado mofado que faz mal à saúde e ter acesso a uma maconha legalizada, de ótima qualidade, resinada e cheirosa”, diz uma parte do vídeo.

À Folha, a equipe Ganja Legal também disse que não promove o uso recreativo da cânabis. “Nós lutamos pelo direito à saúde, pelo direito de viver sem dor, pelo direito de buscar um tratamento alternativo que tem se mostrado eficaz para muitos que não encontram alívio na medicina convencional.”

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