SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Matteo é fruto de um sonho que Leonardo Hatanaka, 36, e Lázaro Mendes, 40, têm desde o início de seu relacionamento, há 16 anos, e enfim foi concretizado em maio passado. O menino que sorri para a tela do computador enquanto os pais contam sua história nasceu na Argentina por meio de uma gestação solidária.
É também nestes meses que os brasileiros pais de primeira viagem relatam enfrentar um périplo contra a situação à qual Leonardo diz ter sido submetido em seu espaço de trabalho após comunicar de forma oficial que era gay e solicitar seu direito à licença-paternidade.
Diretor sênior da unidade de negócios de oncologia e hematologia do Cone Sul na farmacêutica Sanofi e baseado em Buenos Aires a pedido da própria empresa, ele foi demitido sem justa causa, no primeiro semestre deste ano, menos de duas semanas após pleitear o benefício para ficar com Matteo ao lado do marido.
Leonardo afirma que houve discriminação na ação da empresa e recorreu ao Inadi, o Instituto Nacional contra a Discriminação, a Xenofobia e o Racismo. O órgão, ligado ao Estado argentino, validou seu argumento. Em decisão de 11 páginas publicada no último dia 9, o Inadi afirmou que a conduta da empresa foi discriminatória.
Como explica a advogada Tatiana Hirschhorn, que assina o relatório e falou à Folha de S.Paulo, as decisões do Inadi não têm caráter vinculativo –ou seja, não têm poder de decisão judicial. Mas suas recomendações e chancelas visam ter um papel “pedagógico e educativo” rumo a uma sociedade sem discriminação.
O órgão foi fundado na década de 1990 após a ocorrência de dois grandes atentados antissemitas no país, um deles em 1994, quando um carro-bomba matou mais de 80 pessoas em frente à sede da Amia, a Associação Mutual Israelita Argentina, no centro de Buenos Aires.
Procurada pela reportagem, a Sanofi disse que contestará a decisão do Inadi e que o documento não tem implicações legais. Acrescentou que tem compromisso com a diversidade em nível global e local e lembrou que, em 2020, implementou licença parental remunerada de seis meses para mães e pais. Até o momento, informou, 59 funcionários baseados na Argentina foram beneficiados com essa política.
Na ótica do Inadi, porém, as ações da empresa evidenciaram “uma clara atitude punitivista” baseada em uma discriminação pelo fato de Leonardo ser um homem gay. A advogada Tatiana Hirschhorn afirma se tratar de um caso típico de discriminação indireta, no qual “se questionou o modelo de família que Leonardo elegeu para si”.
O imbróglio começou, segundo relatos do casal e detalhes no processo do Inadi, quando Leonardo pediu ao plano de saúde ao qual tinha direito pela empresa que custeasse o tratamento de fertilização que possibilitaria a gestação solidária, uma prática para a qual não há impedimentos legais e que é relativamente comum na Argentina.
Casados desde 2016 no Brasil, o casal à época vivia separado –Lázaro trabalhava em Santiago quando Leonardo foi transferido da capital chilena para Buenos Aires pela empresa–, mas viu em território argentino a possibilidade de realizar o sonho de ter um bebê. Após pesquisarem largamente a prática, eles encontraram em grupos de apoio online uma mulher disposta a ser a barriga solidária.
Os documentos do plano enviados à reportagem mostram que havia cobertura completa para tratamentos de inseminação artificial e fertilização in vitro. Mas a resposta que Leonardo recebeu foi que seu caso não se enquadrava nos critérios de reembolso, válido apenas para quando há um problema de fertilidade em um dos membros do casal.
Na ocasião, ele questionou seus superiores na Sanofi, mas relata ter ficado sem resposta. Com a proximidade do nascimento de Matteo, pediu, então, a licença-paternidade. Mas, antes de receber a liberação, recebeu o comunicado de demissão.
Ao Inadi a empresa alegou que não havia recebido as reclamações do brasileiro e que, desde 2022, ele vinha apresentando uma queda no rendimento de trabalho. Em resposta, o órgão argentino alegou que, com base nas comunicações que lhe foram apresentadas, não observou a queda na produtividade e nem mudanças no bom comportamento do funcionário. Tampouco as testemunhas do processo, que trabalharam com Leonardo, corroboraram essa versão.
“Assim, pode-se ler essa atitude da empresa como fraudulenta que, escoltada pela liberdade de contratar e demitir sem justa causa, optou por isso para não justificar os verdadeiros motivos da rescisão do contrato de trabalho”, diz um trecho da decisão do Inadi.
Mais adiante, o órgão afirma que o processo todo se tornou “tortuoso” para Leonardo devido unicamente a sua orientação sexual. Em agosto, uma psicóloga atestou que o brasileiro hoje sofre de transtorno pós-traumático, com alterações severas na qualidade do sono, e que a condição está relacionada aos episódios do trabalho.
Tatiana Hirschhorn diz acreditar que o caso do brasileiro permanecerá no Inadi como jurisprudência para casos futuros. Ela afirma que foi a primeira vez que o órgão argentino se deparou com uma demissão, nesses moldes, de um funcionário gay. A advogada diz não ver traços de xenofobia no episódio. A decisão do Inadi, no entanto, também menciona relatos de chacotas e piadas feitas no ambiente de trabalho pelo fato de Leonardo supostamente não ter fluência no espanhol.
O casal afirma que planeja entrar na Justiça contra a Sanofi e também tem apresentado reclamações aos serviços diplomáticos brasileiros.
A mobilização na qual mergulharam, afirmam eles, é unicamente por Matteo, quem os pais dizem que foi o mais afetado neste caso, em especial por agora não poder acessar os direitos ao atendimento de saúde do plano do pai, demitido.
“Se fosse só comigo [a discriminação], já estou acostumado”, afirma Leonardo. “Mas com o nosso filho, não. Queremos um mundo melhor, onde a lei seja aplicada e os direitos sejam os mesmos para todos.”
O casamento gay é legal na Argentina desde 2010, o que fez do país o primeiro da América Latina a legalizá-lo. A homofobia, porém, não é tipificada como crime no país. Segundo a Lei 23.592, de 1988, porém, ações consideradas discriminatórias por razões como a orientação de gênero e que ferirem direitos como o de trabalho podem render à vítima uma indenização compensatória.