BRUXELAS, BÉLGICA (FOLHAPRESS) – Enquanto países brigam por vacinas ou nem começaram a imunizar seus habitantes, os enfermeiros britânicos aplicaram 609.010 injeções no sábado (30), o mesmo que imunizar em um único dia toda a população de uma capital como Cuiabá (Mato Grosso).
O recorde diário veio sete semanas depois que uma agulha espetou o braço de Margaret Keenan, 90, no dia 8 de dezembro, marcando o início da primeira campanha bem sucedida do governo britânico contra a Covid-19.
Nesta segunda (1º), o premiê Boris Johnson anunciou que 90% das pessoas com mais de 80 anos já receberam a primeira dose, e ela foi oferecida a todos os mais de 10 mil asilos do país –moradores e funcionários estavam entre principais gurpos prioritários.
Boris também divulgou a compra de mais imunizantes, consolidando doses suficientes para imunizar o triplo de toda a população do país. Com os 40 milhões de novas doses do imunizante desenvolvido pela Valneva, ainda em fase de testes, chegam a 407 milhões as já contratadas.
Só com as três vacinas já em uso –da Pfizer/BioNTech, da Moderna e de Oxford/AstraZeneca– o governo britânico já garantiu 157 milhões de doses, suficientes para injetar as duas injeções necessárias em 78,5 milhões de pessoas. Mais que seus 52,9 milhões de residentes adultos, a partir dos 18 anos. Mais até mesmo que a população total, de 66,7 milhões de habitantes.
Igrejas, estádios, teatros, estacionamentos, clínicas e estações transformados em centro de vacinação parecem indicar que a campanha de Boris tem tudo para cumprir a meta estabelecida para 15 de fevereiro: aplicar a primeira dose em 15 milhões de cidadãos, entre os mais vulneráveis a complicações pela Covid.
O recorde de injeções diárias do sábado fechou uma semana em que dois outros imunizantes encomendados por Boris –os da Novavax e da Janssen– demonstraram ser eficientes contra o Sars-Cov-2 (completam a lista de fornecedores a GSK/Sanovi e a Valneva, que está sendo fabricada na Escócia).
Boris investiu em sete vacinas de tecnologias e fontes diferentes para ter flexibilidade tanto na campanha atual quanto se houver necessidade de revacinar parte da população no futuro. Com fábricas em seu próprio país e a decisão de adiar a administração da segunda dose para alcançar o maior número de pessoas com ao menos uma injeção, ele também ganhou velocidade.
Enquanto as taxas de vacinação sobem, as de ocupação de leitos hospitalares e de UTI caem sucessivamente nos últimos dias. Não há ligação direta ainda estabelecida, mas estima-se que, no Reino Unido, os 20% prioritários para receberam a vacina são os mesmos grupos em que acontecem 90% dos casos mais graves e mortes por Covid-19. Se eles estiverem imunizados, deve se reduzir a pressão sobre os hospitais.
Uma análise do banco Goldman Sachs publicada no dia 18, quando o ritmo de vacinação no Reino Unido não era tão forte como o desta semana, calculava que os imunizantes já tinham reduzido as hospitalizações em 7%.
No melhor cenário, em abril a queda chegaria a 75%, elevando o potencial de recuperação da economia britânica. O impacto é da mesma ordem do estimado pelo JPMorgan: mantido o passo da imunização, o número de pessoas no hospital passaria de 40 mil em janeiro para 10 mil em abril.
O sucesso do governo de Boris no programa de vacinação ainda não se traduziu em popularidade –de acordo com o levantamento mais recente do instituto YouGov, ele era desaprovado por 55% e aprovado por 39%– mas já inverteu a direção da curva e reverteu uma sucessão de medidas erráticas e ineficientes, que levou o Reino Unido ao topo dos países mais afetados pela Covid-19 no mundo: 3,8 milhões de casos e mais de 100 mil mortes desde o começo da pandemia.
Em relação ao tamanho da população, o país é o terceiro com mais mortes, 156 por 100 mil habitantes, atrás da Bélgica e da Eslovênia. Mas agora ele é o terceiro do mundo em um ranking muito mais favorável, o de doses aplicadas por 100 habitantes. Até este domingo, eram quase 14, atrás de Israel e dos Emirados Árabes Unidos e muito à frente de seus vizinhos europeus –o mais avançado deles é a Sérvia, com 6,4/100.
Com isso, Boris não só vê uma chance de recuperar a boa vontade interna como já age para melhorar a imagem internacional.
Seu país é o maior doador para a Covax, mecanismo global para facilitar a vacinação em nações não desenvolvidas, e prometeu outros 548 milhões de libras (R$ 4,1 bi) para distribuir 1,3 bilhão de doses a 92 países em desenvolvimento.
O caminho de Boris para reverter o histórico de fracassos, porém, ainda não está totalmente desimpedido. A recente disputa por vacinas lançada pela União Europeia, por exemplo, pode afetar o fluxo de suprimentos que vêm da Bélgica, reduzindo a produção britânica.
Uma interrupção severa na disponibilidade de imunizantes detonaria uma bomba ainda mais grave: a administração da segunda dose de vacina, que o Reino Unido adiou justamente para fazer deslanchar o número dos que receberam ao menos a primeira injeção. Pelos planos do governo, a segunda dose começará a ser dada no início de julho, o que lhe dará alguma folga para administrar um eventual gargalo.
Um caminho suave depende também da obediência dos britânicos às medidas de confinamento, em vigor até pelo menos 22 de fevereiro.
Com variantes mais contagiosa dominando os novos casos, o número de pessoas infectadas ainda é alto. O mais recente relatório de estudo do Imperial College e do Ipsos Mori com 167,6 mil voluntários mostrou que, de 6 a 22 de janeiro, 1 em cada 64 pessoas tinham contraído o Sars-Cov-2 (em Londres, 1 em cada 35).
É o índice mais alto registrado pelo estudo desde seu início, em maio do ano passado. Os números “são um lembrete gritante da necessidade de permanecer alerta”, disse o secretário da Saúde, Matt Hancock. Estudos feitos no ano passado calcularam que, entre junho e julho, apenas 6% dos britânicos haviam tido contato com o vírus. Trabalhos recentes especulam que esse número poderia ser o dobro mas, ainda assim, quase 9 em cada 10 habitantes ainda poderia ser infectado.
Com o programa de vacinação em marcha, a nova frente de batalha de Boris é isolar todos os casos da variante identificada primeiro na África do Sul. Nos últimos dias, o governo identificou 105 casos desse mutante, 11 deles sem ligação com viagens internacionais, e botou todos em isolamento, incluindo seus contatos. Como parte da operação abafa, funcionários do governo vão bater de porta em porta nesta terça (2) para testar ao menos 80 mil pessoas.
Boris também terá que resolver a questão da desigualdade na proteção de seus habitantes: estudos mostram que minorias e os mais pobres estão mais suscetíveis à contaminação pelo coronavírus e têm menos acesso às vacinas, e torcer para que não surjam novos mutantes resistentes às suas injeções.
CORRIDA PELA VACINA
Oito apostas do governo britânico que pavimentaram a imunização (e alguns possíveis obstáculos)
1.Pesquisa e desenvolvimento
Desde a aprovação do brexit, em 2016, o Reino Unido tinha o objetivo de assumir a dianteira em ciências da vida, e promoveu a aproximação de universidades, setor privado e administração pública, criando uma rede já bem azeitada antes da pandemia.
Em março, o governo investiu 2,6 milhões de libras na pesquisa de Oxford e, em maio, ainda na fase de testes, fechou um acordo com a AstraZeneca.
2. Capacidade de produção e infraestrutura
Com fábricas em seu próprio território e convênio com laboratórios, o Reino Unido aumentou a capacidade de produção e facilitou o acesso aos imunizantes e sua distribuição. A construção do Centro de Fabricação e Inovação de Vacinas, iniciada em 2018, foi acelerada para antecipar a abertura, inicialmente prevista para 2023, para o final deste ano.
No ano passado, o governo coordenou também o aumento da produção de frascos para vacinas e freezers para armazenar as doses, e preparou a logística de distribuição.
Obstáculos: escassez de suprimentos, como os que ocorrem em fornecedor na Bélgica, podem reduzir o abastecimento
3. Reserva antecipada
Além de garantir doses da AstraZeneca em maio, em meados de 2020 Boris já havia anunciado contatos com outras cinco empresas: Janssen (Bélgica), Novavax (EUA), Pfizer/BioNtech (EUA/Alemanha), Valneva (França) e GSK/Sanofi (Reino Unido/França). A Moderna (EUA) completou a carteira.
Obstáculos: vacinas contratadas não significam vacinas disponíveis, como mostra a crise recente na União Europeia. Apesar da promessa de entregar dezenas de milhões de doses, fabricantes podem ter problemas na produção ou descumprirem o acordo por algum outro motivo
4. Diversificação
Boris contratou o fornecimento não só de empresas diferentes, mas de vacinas com tecnologias diversas, o que dá ao Reino Unido mais flexibilidade para escolher o imunizante para cada tipo de público ou contornar eventuais reduções de um dos fabricantes. A diversificação também aumenta a chance de ter uma vacina capaz de combater novas variantes
Obstáculos: duas das sete vacinas ainda não tiveram sua eficácia comprovada, e outras duas ainda não apresentaram todos os resultados para serem autorizadas pelas agências de saúde.
5. Aprovação de emergência
A agência regulatória britânica foi a primeira na Europa a aprovar uma vacina contra Covid-19, em 2 de dezembro, mais de um mês à frente do resto do continente. Isso lhe garantiu 1 milhão de doses disponíveis já na semana seguinte.
A dianteira foi possível porque o governo mudou a regulação para permitir autorização antes do registro definitivo.
Boris aproveitou para lembrar que, se não fosse o brexit, poderia estar enfrentando os mesmos atrasos experimentados pela União Europeia.
6. Segunda dose mais tarde
Para acelerar a aplicação da primeira dose, o intervalo entre as duas doses foi ampliado, de 3 a 4 semanas para 12 semanas. A medida foi avalizada pelo grupo consultivo da OMS como recurso para proteger mais pessoas
Obstáculos: o intervalo mais longo é controverso –cientistas apontam risco de estímulo a mutações. Entidades que cuidam de idosos também criticaram a medida e relataram mortes por Covid-19 de internos que tinham recebido só a primeira dose.
7. Pontos de vacinação
As injeções estão disponíveis em 1.200 clínicas, cerca de 200 farmácias e mais de 200 hospitais. O compromisso é que todo morador da Inglaterra tenha um posto a no máximo 16 km de sua casa. Boris também programou 50 megacentros de vacinação, dos quais cerca de metade foi inaugurada. Já a promessa de abrir postos 24 horas por dia até o final de janeiro não se concretizou.
Obstáculos: há relatos de que o acesso aos centros de vacinação é muito difícil em regiões rurais e mais pobres. Pesquisas mostram também que minorias e a população mais pobre estão menos atendidas pelos serviços de saúde
8. Comunicação
Boris Johnson tem assessores especializados em ciência do comportamento e contra-atacou cedo os antivacinas com campanhas massivas de mensagens positivas nas redes sociais, ações para remover posts com desinformação e equipes para tirar dúvidas.
O governo também colocou no comando das inoculações os clínicos gerais do sistema nacional de saúde, que já têm a confiança da população.
O APERTA-E-SOLTA DE BORIS JOHNSON NA PANDEMIA
§ – aberturas
# – fechamentos
31.jan.2020 – primeiro caso registrado
3.mar.2020 – primeira morte por Covid-19
10.mar.2020 – após confinamento na Itália, britânicos correm aos supermercados. Governo britânico descarta lockdown e cria comissão para combater notícias falsas.
§ 13.mar.2020 – Enquanto 31 países da Europa já haviam fechado escolas, Boris defende manutenção das aulas e conselheiro científico defende objetivo de “construir algum tipo de imunidade coletiva”
# 16.mar.2020 – Governo decreta “isolamento vertical” de quatro meses para maiores de 70 anos, proíbe eventos públicos e pede trabalho em casa
# 17.mar.2020 – Após estudo prevendo 250 mil mortes se o Reino Unido não apertasse controle, Boris reforça restrições
# 20.mar.2020 – Governo fecha pubs, restaurantes, clubes e casas noturnas e anuncia fechamento de escolhas no dia 23
# 23.mar.2020 – Após um fim de semana de parques lotados, Boris decreta primeiro confinamento
§ 26.mar.2020 – Governo britânico diz que estratégia de testes é adequada apenas a nações menos desenvolvidas
# 10.abr.2020 – secretário de Saúde anuncia meta de 100 mil testes até o fim de abril; meta não foi cumprida
§ 28.abr.2020 – grupo de aconselhamento (Sage) afirma que há “pouca justificativa científica” para reforçar controles nas fronteiras
§ 6.mai.2020 – Boris anuncia relaxamento progressivo do confinamento
§ 10.mai.2020 – Boris pede que trabalhadores voltem às fábricas
§ 1º.jun.2020 – escolas começam a reabrir
§ 8.jul.2020 – com taxa de novos casos em baixa, governo lança campanha “Comer fora para ajudar”, incentivando a ida a restaurantes para ajudar a combater a crise; pubs são reabertos
§ 14.ago.2020 – governo encoraja volta aos cafés, bares e escritórios
21.set.2020 – Sage sugere “bloqueio disjuntor” –lockdowns de curta duração acionados quando os números passassem de certo limite, rejeitado por Boris
# 12.out.2020 – Boris lança sistema de três etapas de restrições
# 31.out.2020 – Boris anuncia “bloqueio parcial”, pelo período de um mês; escolas continuam abertas
§ 2.dez.2020 – Bloqueio termina e Inglaterra adota sistema de quatro etapas de restrições; Reino Unido aprova uso de vacina da Pfizer
8.dez.2020 – Boris lança vacinação em massa no Reino Unido
§ 16.dez.2020 – Boris anuncia relaxamento das restrições nos cinco dias de Natal e Ano Novo; na mesma época, governo identifica nova variante mais contagiosa
# 19.dez.2020 – Boris cancela relaxamento
# 4.jan.2021 – Boris decreta terceiro confinamento e cancela reabertura das escolas
# 15.jan.2021 – Inglaterra proíbe entrada de viajantes do Brasil e outros países em que foram encontradas variantes contagiosas
# 27.jan.2021 – Boris impõe quarentena de dez dias em instalações específicas para quem chegar do Brasil e outras
22 origens; governo anuncia que escolas não reabrirão antes de 8 de março
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