(FOLHAPRESS) – A combinação de cortes orçamentários, desprezo a critérios técnicos, ingerência política e denúncias de corrupção resultou, sob o governo Jair Bolsonaro (PL), no desmonte do principal mecanismo de planejamento educacional e de transferência de recursos federais para educação básica do MEC (Ministério da Educação).
Criado em 2007, o PAR (Plano de Ações Articuladas) é um sistema em que as prefeituras cadastram suas demandas e o governo federal realiza repasses para infraestrutura escolar. Os valores operados desabaram na gestão do presidente.
Os gastos no PAR em 2021, de R$ 796 milhões, são os menores em uma década e equivalem a menos de um terço do que foi investido anualmente, em média, de 2012 a 2018 (R$ 2,5 bilhões, em valores de hoje). Neste ano, o montante foi de R$ 260 milhões até 19 de outubro.
Procurados no fim da manhã de sexta (21), MEC e FNDE (Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação), órgão que opera as transferências de recursos, não responderam.
Assim como em outras ações da área, o governo tem ignorado critérios técnicos, numa espécie de balcão político em que os maiores beneficiados são prefeituras aliadas, não quem mais precisa. A prática abre espaço para corrupção.
Eram do PAR, por exemplo, os recursos negociados por pastores sem cargo em troca de barras de ouro, segundo denúncias. O ex-ministro da Educação Milton Ribeiro deixou o cargo uma semana após a Folha revelar áudio em que ele dizia priorizar pedidos de um dos pastores sob orientação de Bolsonaro.
Também vieram do PAR os R$ 26 milhões transferidos para a compra de kits de robótica em cidades com deficiências de infraestrutura, mas com contratos com empresa de um aliado do presidente da Câmara, deputado Arthur Lira (PP-AL).
O TCU (Tribunal de Contas da União) barrou a continuidade de repasses para essas compras. O principal argumento do órgão de controle foi o desrespeito às regras do Plano de Ações Articuladas.
Pelo PAR, a ideia é que os recursos federais para obras e compras de materiais (como mobiliário ou ônibus) sejam direcionados a partir das necessidades de cada ente, levando em conta também as cidades que mais precisam. O dispositivo foi criado no governo Luiz Inácio Lula da Silva (PT) para induzir o planejamento das prefeituras e ampliar as transferências federais com base em critérios técnicos.
Na prática, o PAR virou hoje mera formalidade de cadastro. A decisão de transferências passou a ser preponderantemente política, às vezes até por email das lideranças do MEC, em uma atuação combinada entre parlamentares do centrão e o Poder Executivo.
Bolsonaro deu para esse bloco de políticos o controle do FNDE. O presidente do fundo, Marcelo Lopes da Ponte, foi chefe de gabinete de Ciro Nogueira (PP-PI), líder do centrão e ministro da Casa Civil.
Tanto Ciro Nogueira como Arthur Lira controlam as cifras bilionárias de emendas de relator. Esse tipo de recurso é parte considerável do orçamento discricionário –despesas de livre movimentação, sem levar em conta salários e transferências obrigatórias, por exemplo– do FNDE.
As emendas de relator e o protagonismo do centrão estão no cerne do desmonte do PAR. Em maio, o governo transferiu R$ 495 milhões do fundo (metade da dotação inicial) para outras pastas –tudo nesse tipo de emenda.
A medida, que ajuda a explicar a baixa execução do PAR neste ano, ocorreu após denúncias de corrupção que jogaram luz sobre o FNDE, sobretudo a revelação sobre a compra de kits de robótica.
Mas, antes disso, a priorização de aliados era clara: dos R$ 522 milhões empenhados dentro do MEC em 2022 por emendas de relator, 20% foram para Alagoas, estado de Lira.
No projeto do Orçamento de 2023, o governo reservou R$ 1 bilhão do MEC às emendas de relator. É o mesmo valor que foi retirado da rubrica relacionada à educação básica, na comparação com o projeto deste ano.
No orçamento direto do MEC, há previsão de apenas R$ 5 milhões para construção de creches em 2023, na esteira de fortes cortes desde 2019. Esse valor não é suficiente para bancar nem duas unidades.
“O PAR é um instrumento que já foi muito grandioso. Primeiro instituiu critério para transferência, e tinha uma lógica de planejamento das redes, com diagnóstico, metas. Ele não só repassava dinheiro como também ajudava a rede a se organizar para gastar com o que precisava mais”, diz Lucas Hoogerbrugge, do Movimento Todos pela Educação.
“Agora virou uma deturpação do mecanismo. O governo acaba com ele tirando dinheiro, e o recurso que fica é deturpado ainda ao ser distribuído sem critério.”
O PAR passou alguns anos por um processo de implementação. O ano de 2012, já no governo Dilma Roussef (PT), representa um marco tanto de volume de recursos aplicados quanto em relação ao modelo de colaboração com as prefeituras. Foi importante nesse caminho a consolidação do uso do Simec (Sistema Integrado de Planejamento, Orçamento e Finanças do Ministério da Educação), por meio do qual os municípios interagem com a pasta.
Com a crise econômica em 2015, os gastos do MEC no geral tiveram forte recuo, o que impactou no PAR. Ainda assim, o patamar de orçamento se manteve equivalente a duas vezes o gasto médio do governo Bolsonaro.
Ex-secretário de educação por nove anos em Monte Alegre (RN), Alexandre Soares Gomes diz que, mesmo quando houve desafios com o PAR, havia uma política pública por trás.
“Agora falta uma diretriz nacional, o MEC perdeu protagonismo”, diz.
A CGU (Controladoria-Geral da União) concluiu, em relatório técnico obtido pela Folha, que a ausência de critérios técnicos na distribuição de recursos potencializou a ocorrência de “acordos escusos” na Educação.
Há ainda outra faceta do desmonte: cidades mais ricas foram privilegiadas em detrimentos das mais vulneráveis, que deveriam ter prioridade.
O FNDE tem ignorado regra que preconiza distribuição de recursos a partir de um ranking de vulnerabilidade dos municípios. Os técnicos da CGU elaboraram essa lista e identificaram distorções.
Ao dividir as cidades por nível de vulnerabilidade, a Controladoria identificou empenhos no total de R$ 170,7 milhões para 538 municípios com condições mais precárias. Por outro lado, o dobro em empenhos (R$ 348,7 milhões) foi para 809 cidades na outra ponta do ranking –que reúne as mais ricas.
O empenho é a primeira etapa da execução orçamentária e reserva recursos para determinadas ações. A ingerência política no FNDE e o ímpeto em agradar a aliados produziu uma situação de descontrole, com explosão de empenhos em pequenos valores e até burla no sistema, como a Folha mostrou em março.
A soma do custo total dos processos relacionados às liberações de 2021 (e não só do valor empenhado) chegam a valores inexequíveis, segundo especialistas.
O PAR é operado em ciclos, em uma espécie de plano plurianual de apoio federal. O chamado PAR 4, que compreende o período de 2021 a 2024, teve apenas empenhos, e nenhum centavo pago.
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