BRASÍLIA, DF (FOLHAPRESS) – A CGU (Controladoria-Geral da União) concluiu que o governo Jair Bolsonaro (PL) ignorou de modo sistemático critérios técnicos na transferência de verbas da educação, potencializando a ocorrência de “acordos escusos”.
A atual gestão privilegiou cidades mais ricas em detrimentos das mais vulneráveis, que deveriam ter prioridade nos repasses para a área de educação, segundo o órgão.
A área técnica da controladoria ainda indica que o MEC (Ministério da Educação) não cumpre sua função de alocação de recursos alinhada a políticas públicas e deixa de fornecer assistência técnica a prefeituras. O quadro atual distanciou a pasta da sua missão constitucional e potencializou o aumento da desigualdade, de acordo o documento.
Obtido pela reportagem, o relatório preliminar de avaliação formulado pela CGU é voltado às operações do FNDE (Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação) em 2021. Também aborda irregularidades cometidas desde 2019, primeiro ano do mandato. O documento ainda não foi divulgado oficialmente.
“A falta de critérios técnicos para a alocação dos recursos discricionários, a ausência de observância do fluxo técnico definido na liberação dos recursos, associado à decisão individual e não motivada da alta gestão da Unidade [FNDE]”, diz o relatório, “potencializa sobremaneira a possibilidade de acordos escusos, com consequentes liberações indevidas de verbas a entes federados em detrimento dos que, legalmente, deveriam ter prioridade”.
O FNDE está no centro de denúncias de corrupção neste governo, com atuação de pastores ligados a Bolsonaro na negociação de verbas e também por sequestro político das decisões de transferências.
O chefe do Executivo entregou o órgão para políticos do centrão, o que resultou em um FNDE como uma espécie de balcão de negócios.
Como mostrou o jornal Folha de S.Paulo em março, houve uma explosão de empenhos para atender aliados e até burla no sistema interno para liberar novas obras. O agora ex-ministro da Educação Milton Ribeiro foi demitido uma semana depois que a Folha de S.Paulo revelou áudio em que ele dizia priorizar demandas de um dos pastores a pedido de Bolsonaro.
Questionados, MEC e FNDE não responderam . As denúncias reveladas pela imprensa referem-se em geral ao PAR (Plano de Ações Articuladas), pelo qual se fazem transferências federais para municípios em ações como obras, compra de materiais e ônibus escolares. A área técnica da CGU detalha várias facetas de irregularidades na gestão desse mecanismo do FNDE.
As regras do PAR exigem que o dinheiro seja direcionado a cidades que mais precisam. Para isso, é prevista a elaboração de um ranking que leve em conta dados sociais e educacionais de cada região.
Não houve, contudo, qualquer atenção a esse ranking, aponta a CGU. A controladoria coletou exemplos de liberações de empenhos determinadas, por email, pelo próprio presidente do FNDE, Marcelo Lopes da Ponte, o que caracteriza desrespeito às regras.
Pontes foi chefe de gabinete de Ciro Nogueira (PP-PI), liderança do centrão e ministro da Casa Civil de Bolsonaro.
O relatório preliminar aponta “fragilidade na liberação de recursos, com tomada de decisão a partir da alta gestão da unidade e sem motivação técnica, caracterizada pela ausência de utilização de ranking previsto em normativo, possibilitando favorecimentos indevidos”.
Uma das consequências desse descontrole técnico se expressa na liberação de recursos, que privilegiou cidades mais ricas. Os técnicos da CGU elaboraram o ranking que deveria ser seguido pelo FNDE e identificaram essas distorções.
Ao dividir as cidades por nível de vulnerabilidade, a CGU identificou, por exemplo, que o FNDE direcionou empenhos em 2021 no total de R$ 170,7 milhões para 538 municípios com condições mais precárias. Isso atendeu a 32% das cidades mais vulneráveis e 26% de alunos com esse perfil.
Por outro lado, o dobro em empenhos (R$ 348,7 milhões) foi direcionado para 809 cidades na outra ponta do ranking –que reúne as menos vulneráveis, ou seja, mais ricas. O que atendeu 57% dos municípios desse perfil, e 44% dos alunos desse grupo.
Esse comportamento ocorre desde 2019: naquele ano, um grupo de 509 cidades menos vulneráveis recebeu R$ 346 milhões empenhos, enquanto o FNDE transferiu somente R$ 260 milhões para um conjunto de 509 cidades pobres.
O empenho é a primeira fase da execução orçamentária. Ele reserva o dinheiro no Orçamento para determinada ação.
A CGU afirma que a falta de critério no repasse das verbas ocorreu porque o financiamento das ações “foi realizado de forma discricionária, a partir de indicações advindas da alta gestão do FNDE, por meio de mensagens eletrônicas à área técnica”.
Com isso, foi ignorado o ranking elaborado para determinar o nível de vulnerabilidade das prefeituras e decidir para onde devem ir os recursos.
“Verifica-se que a previsão normativa de formulação e utilização de rankings para alocação de recursos discricionários buscava garantir tecnicidade ao processo. Criado em 2020, observou-se que ele nunca foi empregado”, afirma o relatório.
A consequência, segundo a CGU, é a maior possibilidade de “acordos escusos, com consequentes liberações indevidas de verbas a entes federados em detrimento dos que, legalmente, deveriam ter prioridade”.
O relatório não aborda o ano de 2022, mas reportagens da Folha mostraram continuidade de favorecimento nas transferências e ausência de critérios técnicos. Sete prefeituras de Alagoas receberam do FNDE R$ 26 milhões para compra de kits de robótica.
Além de enfrentarem até falta de água em escolas, todas as prefeituras tinham contrato com uma mesma empresa cuja família dona tem estreita ligação com o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL).
Questionada, a CGU não respondeu quais serão os próximos passos após a conclusão do relatório preliminar.
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