SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – A intensificação dos ataques russos no “moedor de carne” de Bakhmut, no leste da Ucrânia, agravou a crise política entre os mercenários encarregados do grosso da operação e as Forças Armadas de Vladimir Putin.
Nesta segunda (6), o líder do Grupo Wagner, Ievguêni Prigojin, voltou a se queixar em seu canal no Telegram que falta munição para sustentar o assalto à cidade, que tanto Moscou como Kiev elevaram ao status de uma Stalingrado nessa guerra –em referência à encarniçada batalha entre nazistas e soviéticos pela atual Volgogrado, vencida pelos últimos há 80 anos.
“No dia 5 de março eu escrevi uma carta para o comandante da operação militar especial sobre a necessidade urgente de alocação de munição. No dia 6, às 8h, meu representante no quartel-general teve seu passe cancelado e acesso negado”, afirmou Prigojin.
Ele já havia dito que seus mercenários, boa parte deles recrutada em prisões russas com a promessa de perdão posterior, estavam sofrendo com o problema, atribuído “ou a uma monstruosa burocracia ou à traição”.
Bakhmut está praticamente cercada por forças russas, do Wagner em sua maioria. Apenas uma estrada permite suprimento dos ucranianos na cidade, que de um centro com 70 mil pessoas passou a uma coleção fumegante de ruínas com 4.500 civis escondidos, segundo a prefeitura local.
Com sete meses de combates, é a batalha mais longa e intensa da guerra até aqui, suplantando o simbólico cerco de Mariupol, no sul, vencido pelos russos em maio do ano passado. Analistas afirmam que Bakhmut só tem peso estratégico para a conquista da região de Donetsk se sua queda implicar o colapso de um setor da frente ucraniana.
Isso é incerto, mas o fato é que o governo de Volodimir Zelenski investe pesado em sangue e equipamentos para manter a cidade. Nesta segunda, o presidente reuniu-se com a cúpula das Forças Armadas em Kiev e decidiu enviar mais reforços para a região, talvez vendo algum valor em um outro alerta feito por Prigojin.
Em um vídeo sem data, que aliados dizem ser de pelo menos duas semanas atrás, o líder mercenário afirma que, sem munição, terá de recuar. “Se o Wagner recuar de Bakhmut agora, todo a frente vai colapsar e a situação não será boa para todas as formações militares protegendo interesses russos”, disse.
Ocorre que o mesmo Prigojin postou na sexta (3) um ultimato para Zelenski desistir de Bakhmut, dado que a cidade está cercada e seus soldados já combatem nas suas ruas, o que é verdade. Assim, tudo parece mais parte da dança entre o mercenário e o comando russo.
Prigojin era conhecido como o “chef de Putin”, já que suas empresas forneciam refeições no Kremlin, e sempre propagandeou proximidade com o presidente. Observadores da política russa dizem que isso é superestimado.
Isso dito, em 2014 ele recebeu autorização para montar uma empresa militar privada, o Grupo Wagner, que atuou de forma terceirizada para Moscou na anexação da Crimeia. O negócio se expandiu e Prigojin passou a operar em países africanos, como Líbia e República Centro-Africana, e na Síria -onde a Rússia também tem presença militar formal.
Com isso, o perfil político do “chef” cresceu, e ele passou ser visto nos meios militares como uma ameaça óbvia. O emprego maciço de forças suas no leste da Ucrânia, usualmente sem muito sucesso até o cerco de Bakhmut, é mais um capítulo dessa queda de braço.
Seus principais rivais são o ministro da Defesa, Serguei Choigu, e o chefe do Estado-Maior das forças russas e comandante da guerra na Ucrânia, Valeri Gerasimov. No começo do ano, eles já haviam incitado uma crise com Prigojin ao ignorar o papel do Wagner na tomada de Soledar, mas acabaram voltando atrás.
Choigu visitou nesta segunda pela primeira Mariupol, no terceiro dia de um tour raro por áreas ocupadas pela Rússia na Ucrânia. Foi uma demonstração de força, considerando que sua presença claramente atrai o risco de ataques de Kiev, contrastando com as queixas de Prigojin.
Muitos analistas russos veem o “chef” como um arrivista tentando se firmar em um meio social distinto –ele é conhecido pela brutalidade adquirida nos nove anos que passou preso por roubo, no ocaso da União Soviética.
Sua real influência junto a Putin pode ser exagerada, mas é fato que ele tornou-se uma figura pública na TV estatal russa, tanto que em setembro passado admitiu pela primeira vez ter fundado o Wagner –o que irritou militares, que veem nos mercenários uma força auxiliar importante para usar quando precisam negar a autoria de alguma ação, como de resto os Estados Unidos sempre fizeram no Iraque e no Afeganistão.
O emprego de condenados também desagrada o poderoso FSB, o serviço de segurança interna da Rússia, que muitas vezes trabalhou para colocar essas pessoas na cadeia. Caso elas sobrevivam às táticas quase suicidas de ataques frontais no “moedor de carne”, voltarão após seis meses perdoadas para o país.
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