BUENOS AIRES, ARGENTINA (FOLHAPRESS) – Durante anos, o uruguaio Victor Hugo Morales, 73, teve vergonha de sua obra-prima. Cada vez que participava de algum programa de rádio e a gravação com o som da sua voz aparecia, ele abaixava o volume.
A partir de 25 de novembro de 2020, dia da morte de Diego Maradona, o jornalista passou a ser procurado quase todos os dias no edifício da C5N, canal de notícias onde trabalha, em Buenos Aires.
Nas entrevistas que concedeu desde então, houve sempre o pedido para lembrar sua narração mais famosa: o segundo gol de Maradona contra a Inglaterra, nas quartas de final da Copa do Mundo de 1986. O lance em em que o camisa 10 parte com a bola dominada do campo de defesa e só para após driblar o goleiro Peter Shilton e tocar para a rede.
“Com o passar do tempo, o gol foi se transformando em algo especial. Me perguntei: quem sou eu? Que excesso de vaidade absurda é essa que me leva a rechaçar ou não estar feliz com o momento mais importante da minha vida? Pela repercussão profissional que teve, seria muito estúpido não desfrutar do que aconteceu. Então fui me reconciliando com o gol”, afirma Morales à Folha.
Mesmo fora da Argentina, a narração se tornou célebre para os amantes do futebol. A frase “barrilete cósmico, de que planeta viniste?” (pipa cósmica, de que planeta vieste?, em espanhol) se tornou uma das mais associadas à carreira de Maradona.
Em 2014, foi lançado o livro “Barrilete cósmico: el relato completo”, com o texto da narração de Vitor Hugo Morales, na íntegra, da histórica partida. A obra está esgotada.
Depois da morte de Maradona, camisetas foram vendidas no centro da capital argentina com a imagem do jogador a celebrar o gol contra os ingleses e frases usadas por Morales na ocasião, como “Gracias Dios por el fútbol, por Maradona, por estas lágrimas, por este Argentina 2, Inglaterra 0”.
O motivo para ele rejeitar por tanto tempo sua narração é por considerá-la emocional demais, pouco descritiva. Temia ter ficado tão emocionado a ponto de perder o controle do próprio relato.
“Enquanto Diego passava por um inglês atrás do outro, eu não narrei o que via, dizia apenas ‘gênio, gênio’. Privilegiei um sentimento, não a descrição. Meu pensamento é que havia perdido as rédeas. Eu estava com bronca, com raiva e admiração por Diego. Tudo junto”, explica.
A admiração por Maradona era óbvia, pelo que o jogador havia acabado de fazer. A bronca e a raiva se justificavam pelo tratamento que considerava injusto dado àquela seleção argentina. Morales era um dos maiores defensores do trabalho do técnico Carlos Bilardo, que terminou como campeão do mundo.
O termo “barrilete cósmico” foi uma cutucada em César Luis Menotti, treinador que levou à Argentina ao título em 1978 e um dos críticos do time de Bilardo. Antes da Copa no México em 1986, ele havia apostado na Inglaterra como campeã e que Maradona seria uma pipa, um jogador a oscilar para cima e para baixo.
Victor Hugo Morales não quer mais falar sobre Menotti. Afirma ser coisa do passado.
“Maradona emite algo que é inspirador, e eu tive a sorte de me deixar emocionar. Havia muitos fatores que coincidiam. A Guerra das Malvinas [contra os ingleses, encerrada em 1982], o estádio hostil de uma maneira insuportável, com gente a torcer mais pelos ingleses do que pelos argentinos. O destrato dos jornalistas argentinos a essa equipe. E a jogada. Tudo isso foi um coquetel explosivo”, define.
A narração foi um dos motivos que o aproximaram de Maradona. Quando Diego foi contratado pela TeleSur, emissora multiestatal mantida por governos de esquerda da América Latina, Victor Hugo Morales o acompanhou.
Por um mês, durante os Mundiais de 2014 e 2018, eles conviveram todos os dias. Na Copa realizada no Brasil, o show televisivo se chamou “De Zurda” (de canhota). Na Rússia, mudou para “La Mano del Diez” (A mão do dez).
Foi quando o narrador percebeu que Diego Maradona não tinha um minuto de paz. Notou que quando ele queria ficar em silêncio, sem ser perturbado por ninguém, se trancava no banheiro. “Eu tinha medo que Maradona fosse um ogro, uma pessoa insuportável. É ruim conviver com um ídolo e descobrir que ele é assim. Diego era um pão de Deus. Quando não era agredido, era tão bom que dava pena.”
“Tanto no Brasil quanto na Rússia, tínhamos uma equipe de 40 pessoas, e ninguém nunca o viu irritado ou aborrecido. Ao mesmo tempo, era dolorido ver que esse homem estava de frente à praia mais linda do mundo, na Barra da Tijuca, no Rio de Janeiro, e não colocou os pés lá nenhuma vez. Nunca pôde ir porque nunca teve um minuto para si mesmo”, lamenta.
Com sua voz de barítono, aparentando sempre estar prestes a dizer algo importante, Victor Hugo Morales assumiu o papel de defender Maradona contra o que chama de “intelectuais estúpidos” por não conseguirem entender a importância do jogador para o povo argentino. O narrador e apresentador faz isso como se pagasse uma dívida de gratidão.
“Escuto que ele tinha defeitos. Bárbaro! De qual defeito querem falar de Diego? Agora tragam-me aqui uma pessoa que não tenha nenhum defeito. A quem chamamos? O papa? Tampouco. Não se salva nem o papa. Quando a obra é maior que os defeitos, eu fico com a obra. Aborrece também o argumento do intelectual que despreza o futebol porque, na verdade, ele não consegue entendê-lo. É um estúpido”, afirma.
Morales fala tudo isso com entonação bem mais calma do que a usada na tarde em que entrou para a história, gritando que queria chorar após o gol de Maradona sobre os ingleses. Foi quando bradou ao ver o camisa 10 correndo na direção da bandeirinha de escanteio para comemorar: “Santo Deus, viva o futebol!”.Victor Hugo Morales, 73
Nascido em Cardona, no Uruguai, em 26 de dezembro de 1947, o narrador iniciou a carreira nas rádios uruguaias, mas se radicou na Argentina a partir de 1981, onde vive até hoje. Atualmente, trabalha como apresentador do canal argentino de notícias C5N, disponível na TV a cabo.
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