Em 2018, quando eleito presidente da Associação Médica Mundial (WMA), entidade que produz orientações relacionadas ao trabalho dos médicos, o psiquiatra e professor da Unifesp Miguel Roberto Jorge tinha planos de ter como tema de sua gestão a relação médico-paciente, mas tudo mudou com a pandemia.
Ele esteve à frente do cargo da associação, que reúne entidades médicas de cerca de 115 países e que representa mais de 10 milhões de profissionais da área, desde quando o mundo assistiu à descoberta do vírus, passando pela escassez de equipamentos de proteção individual (EPIs) e respiradores, além dos picos de infecções e mortes.
Agora diretor da entidade, Jorge atribui parte do avanço da pandemia no Brasil às posturas do presidente Jair Bolsonaro. Ele e outros integrantes da cúpula do governo federal minimizaram os riscos de aglomeração, frequentaram locais públicos sem máscara e criticaram medidas de isolamento social. “Se tivesse tido conduta sensata e alinhada com o que os experts em saúde e profissionais de Medicina, teríamos menos mortes. Essas atitudes fizeram com que mais pessoas se expusessem, se infectassem e morressem.”
Ele também descarta existir qualquer “tratamento precoce” contra a covid-19 e criticou a falta de posicionamento do Conselho Federal de Medicina (CFM) mais firme sobre o tema. Em nota, o órgão afirma que “defende a autonomia médica” e que “não apoia ou proíbe” o tratamento precoce. Diz ainda monitorar “o andamento de pesquisas sobre o tema ao redor do mundo em busca de evidências sólidas”. Leia, abaixo, os principais trechos da entrevista.
O senhor atuou como presidente da Associação Médica Mundial durante o início e praticamente o primeiro ano da pandemia. Como foi a experiência?
Meu mandato começou no último dia de outubro de 2019 e terminou no último dia de outubro de 2020. Agora, estou no cargo de presidente passado imediato e continuo acompanhando o que acontece na pandemia em todo o mundo. No início do mandato, comecei a participar de eventos médicos e tudo transcorreu bem até janeiro de 2020, quando começaram a pipocar os relatos vindos da China. Em um primeiro momento, os primeiros problemas que chegaram foi a falta de EPIs. Depois, começaram a faltar os respiradores. A gente tinha de se voltar às sociedades e governos para ajudar as pessoas que estavam adoecendo e evitar infecções. Demorou certo tempo para se normalizar.
No Brasil, estamos vendo médicos prescrevendo e a indicação até do presidente para um suposto tratamento precoce para covid, com medicamentos como cloroquina, ivermectina e nitazoxanida, que não têm eficácia contra a doença. Como a associação vê essa situação?
A posição sempre foi a que temos em relação a qualquer tipo de doença: de que nos norteamos única e exclusivamente por evidências científicas, dados publicados em pesquisas e inquestionáveis. Dentro dessa ótica, não há tratamento precoce, não há nenhuma medida que pode ser considerada como tratamento precoce, assim como não há nenhum tratamento para a covid-19 depois de instalada a doença, algo que inative o vírus e que possa ser considerado tratamento. Existem protocolos para o manejo do que o vírus provoca nas pessoas: quadro inflamatório generalizado, distúrbios de coagulação. Uso de medicamentos deve ser feito a respeito disso e são usados corticóides, anticoagulantes. Cloroquina, ivermectina, antiparasitários, infelizmente, têm sido indicados e prescritos por médicos. A nosso modo de ver, representa um risco adicional, porque as drogas não são inócuas. Para pacientes com comorbidades, algumas dessas drogas chegam a representar um perigo.
Isso também está acontecendo em outros países?
Em países onde há uma cultura semelhante à brasileira, está acontecendo, mas não temos levantamento sobre isso. Acontece no mundo em desenvolvimento. O CFM (Conselho Federal de Medicina), no começo da pandemia, emitiu nota oficial sobre o tema basicamente considerando que não havia evidências, especificamente sobre cloroquina, mas o médico não estaria sendo antiético. Se algo justificou essa infeliz nota naquele momento porque havia dúvidas, assim como sabíamos muito menos a respeito da covid, nos meses que se seguiram e com inúmeros estudos foram publicados, o CFM deveria ter emitido nova nota atualizada, afirmando que não havia estudo que embase uso nas fases precoces.
Isso acontece em um momento em que o médico tem ganhado destaque na sociedade. Não pode ser algo que vai desacreditar esses profissionais?
Existem médicos que prescrevem, uma minoria. E esse tipo de narrativa acaba tendo impacto nos pacientes, porque eles pressionam seus médicos a prescreverem e qualquer tipo de papel sobre o tratamento tem de ser do médico. Mas é uma realidade que se tem aqui. Não é uma realidade dos países que lidam com qualidade com a medicina.
Há alguma sanção prevista para esses casos?
No Brasil, o médico tem autonomia de, no exercício da Medicina, fazer a indicação “off label” (uso de um remédio para condição diferente da prevista na bula) sob risco de ser responsabilizado pelo que pode causar. O paciente pode processar na Justiça comum, fazer queixa no Conselho Federal de Medicina. Dentro da ótica de boa relação médico-paciente, os pacientes passaram a ter protagonismo maior. Antes, eram submissos. Hoje cabe ao médico apresentar todas as opções possíveis e adotar aquela que julgue mais adequada para a condição do paciente. Muitas vezes, o paciente prefere outro tratamento. O que não pode é o médico aceitar que, por força da opinião, adotar um tratamento que vai contra a diretriz científica, adotar condutas que vão contra sua noção de boas práticas e com risco de perder seu paciente.
Quais caminhos o senhor vê para que essa situação seja revertida?
Uma mudança só virá com a maior educação da população em geral a respeito de saúde, doença, Medicina e tratamentos. Por causa da pandemia, estamos vendo aumento da circulação de notícias, mas ainda existem fake news. Temos de trabalhar difundindo como evitar a pandemia e a covid-19 para que diminua a questão da automedicação, a crença em charlatães que oferecem cura para algo que nem tem tratamento. Infelizmente, temos profissionais e políticos que ideologizaram a questão. O líder maior, o presidente da República, no meu modo de ver, contribuiu bastante, com suas falas inadequadas e comportamentos, para o aumento de infecções e mortes por covid. Se tivesse tido conduta sensata e alinhada com o que os experts em saúde e profissionais de Medicina, teríamos menos mortes. Essas atitudes fizeram com que mais pessoas se expusessem, se infectassem e morressem.
O Brasil, por muitos anos, foi referência em vacinação, inclusive conseguiu imunizar sua população durante a pandemia do H1N1. Quais os principais erros cometidos pelo governo federal?
Infelizmente, o governo federal esteve, durante toda a pandemia, muito mais preocupado em alardear que a situação não era séria para que, de alguma forma, as pessoas continuassem trabalhando e tocando a economia do País. Mais preocupado em como isso poderia afetar a economia do País do que propriamente voltando os olhos de maneira responsável para cuidar da ameaça que existia e existe sobre a saúde das pessoas. Certamente, o fato de que não tínhamos, no Ministério da Saúde, pessoas que pudessem ser consideradas como aquelas que tinham voz e especialidade no assunto. Tudo que o presidente quis foi acabar tendo um ministro absolutamente subserviente ao que ele queria que fosse propagado, como drogas e medicamentos sem nenhum tipo de eficácia comprovada e desrespeitando e até mesmo desqualificando as medidas preventivas. A preocupação foi de ter sempre alguém subserviente e não alguém para trazer efetivamente a orientação e a voz de especialistas no assunto. Temos sanitaristas, infectologistas, imunologistas: são essas as pessoas que deveriam nortear a política do governo. Coisa que não foi feita e que está resultando neste número absurdo de casos e de mortes, que poderiam ser menores. Por outro lado, com a palavra dos especialistas, obviamente que a diplomacia brasileira poderia e deveria ter ido atrás de fazer o que muitos países fizeram no sentido de garantir o fornecimento de vacinas quando estivessem aprovadas e disponíveis. Isso não foi feito e estamos vendo, hoje, essa quase realidade de que há um número absolutamente desprezível de vacinas disponíveis no País. Não temos a menor ideia de quando mais vacinas estarão disponíveis, o que vai atrasar bastante a vacinação da nossa população, seja população de risco, seja a população em geral, e isso vai contribuir para um número ainda maior de casos e, consequentemente e proporcionalmente, de mortes também.
Como contornar a situação para garantir que a população seja imunizada e o ciclo de infecções e mortes seja interrompido?
Daqui para frente, o que poderia ser feito é o que deveria ter sido feito. Para com essa história de ficar propondo tratamentos precoces que não levam a lugar nenhum, chamar os especialistas, colocar diplomatas sérios na mesa para conduzir as negociações com outros governos onde as fábricas de ingredientes ativos se localizam, como China e Índia, e vamos, infelizmente, ter de esperar, dentro dessa competição global por vacinas, que acabe chegando a nossa vez, sobrando alguma coisa aqui para nós. Essa é a triste realidade do País onde a gente vive hoje em dia. Uma total irresponsabilidade na maneira como isso foi conduzido. Muitos dos nossos governadores tentaram, de alguma forma, buscar medidas alternativas, um ou outro com um pouco de sucesso, mas essa situação deveria ter sido cuidada centralmente, obviamente com o auxílio de todos os governadores. E não nessa luta fratricida que a gente está vendo e que acaba afetando a todos nós e, principalmente, àqueles mais desprivilegiados, que sofrem na pele as consequências dessa situação que acabou sendo ideologicamente e partidariamente contaminada sem nenhum tipo de benefício para qualquer das partes.
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