SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Um levantamento inédito apontou que quase 400 propriedades privadas no Vale do Ribeira, no sul do estado de São Paulo, estão registradas em terrenos que pertencem a comunidades quilombolas.
O estudo, feito pelo ISA (Instituto Socioambiental) em parceria com o Conaq (Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas), mapeou os registros de CAR (Cadastro Ambiental Rural) da região e mostrou que ao menos 393 imóveis privados incluem como sua propriedade parte de 29 comunidades quilombolas reconhecidas no Vale do Ribeira.
Além disso, o documento diz ainda que quase metade das áreas dos quilombolas (43%) na região registram sobreposições com imóveis privados.
Desde 2012, quando o Código Florestal foi alterado, o CAR passou a ser obrigatório para todos os imóveis rurais do país e, apenas com ele, o proprietário tem acesso aos benefícios previstos no código, como financiamento de crédito e guia de trânsito animal.
No estado de São Paulo, a inscrição dos territórios quilombolas no CAR é de atribuição do Itesp (Fundação Instituto de Terras do Estado de São Paulo).O documento, porém, foi criado sem pensar nessas comunidades, afirma o advogado do ISA Fernando Prioste
“Com a pressão dos ruralistas, foi alterada a legislação para atender o interesse deles e não o da população geral. Os quilombos não vivem naquela porção de terras como um fazendeiro, eles usam as terras de forma coletiva”, diz.
Existe um módulo de CAR federal exclusivo para a inscrição de comunidades tradicionais, mas ele não foi adotado no estado, segundo Rodrigo Marinho, morador da comunidade de Ivaporunduva e articulador da Eaacone (Equipe de Articulação e Assessoria às Comunidades Negras).
Segundo Prioste, a situação de sobreposição de registros privados com áreas quilombolas gera dois problemas.
O primeiro é de caráter fundiário, já que a presença de pessoas de fora da comunidade impede que os quilombolas façam uso desse território, criando um um impasse para o plantio e para a construção de casas. Já a segunda questão é de caráter ambiental, uma vez que as sobreposições de terras geram um conflito sobre onde ficarão as áreas de preservação daqueles territórios.
O Vale do Ribeira tem histórico de conflitos agrários. Também é na região que fica a cidade de Eldorado, na qual o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) passou a maior parte da infância e da juventude. Durante uma palestra em 2017, o então pré-cadidato disse que não iria titular e nem marcar um centímetro de terra indígena ou quilombola se fosse eleito –o que gerou críticas dos quilombolas.
“Quando o presidente diz que não vai reconhecer território remanescente de quilombo, ele está dizendo para 54% da população que não nos considera passíveis de direito”, lamenta Zulu Araújo, ex-presidente da Fundação Palmares durante o governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT), citando a parcela da população que se identifica negrda, de acordo com dados do IBGE.
Para ele, ainda há uma falta de compreensão a respeito dos direitos quilombolas no país. “Os quilombos surgem pela necessidade de garantir o bem elementar do ser humano que é a liberdade. Eles eram afastados das cidades porque suas vidas estavam em risco.”
No total, o Vale do Ribeira reúne 33 comunidades certificadas pela Fundação Cultural Palmares, sendo que 29 destas são reconhecidas pelo Itesp como um território remanescente de quilombo –no resto do estado, existem apenas outros 7 locais com essa classificação.
Porém, apenas seis delas possuem o termo de posse da área, a penúltima etapa do processo para as comunidades serem formalmente reconhecidas como áreas quilombolas. A última fase, de titulação, é de responsabilidade do Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária) –Ivaporunduva é a única que está totalmente titulada na região.
O levantamento do ISA com o Conaq aponta que existem registros de imóveis privados em todas as 29 comunidades da região, sejam elas tituladas ou não.
Há até casos como o das comunidades de Bombas e Peropava, em que a área de sobreposicao acumulada superou a area dos territórios quilombolas, em 154% e 119%, respectivamente.
A legislação brasileira reconhece a propriedade definitiva aos remanescentes dos quilombos que estejam ocupando suas terras, sendo dever do Estado emitir os títulos.
Por isso, o direito constitucional quilombola se sobrepõe aos direitos de propriedade individual, explica o advogado Prioste. Assim, os imóveis particulares que já existiam antes da demarcação de terras, se tiverem a documentação correta, devem ser indenizados.
No caso de documentos de áreas individuais sem validade, como acontece nos casos de grilagem de terras públicas, o Estado deve indenizar soomente as benfeitorias feitas de boa-fé, mas não o valor da terra.
A relação entre quilombos e pessoas de fora da comunidade (chamados de terceiros) é conflituosa, diz Marinho –e a demora do Estado brasileiro para resolver a situação agrava ainda mais o problema. “Eles [os terceiros] entendem que os quilombos querem tomar suas terras”, afirma.
Segundo ele, até existe uma relação entre os dois lados, em especial quando os terceiros contratam pessoas das comunidades para prestarem algum serviço . “Mas é uma convivência limitada, o que o terceiro visualiza nos quilombolas é a questão da mão de obra. Quando se fala da questão territorial, eles já mudam a conversa”.
Quando era criança, Rafaela Santos, advogada do Eaacone e quilombola da comunidade de Porto Velho, lembra ter visto um terceiro destruir a marretadas a igreja da sua comunidade, em 2003. “Esses casos marcam a nossa trajetória enquanto comunidade”, diz.
Segundo ela, esse tipo de problema segue acontecendo recentemente, por exemplo, um dos terceiros da sua comunidade pretendia plantar pinus na área. “Para nós, isso significa dano ambiental, pois além de estragar o solo, promove a secura das nossas poucas águas e nascentes. Como vão estar os nossos territórios quando eles forem nos devolvidos?”
Procurado, o Itesp reconheceu que existem terras particulares sobrepostas a terras quilombolas, mas afirmou que a competência para a regularização fundiária é da União. O órgão também informa que oferece orientação técnica às comunidades quilombolas quanto ao CAR.
Já o Incra afirma que a sede paulista não recebeu nenhuma solicitação das comunidades remanescentes de quilombos para atuar na questão de sobreposição de CAR de imóveis privados em territórios quilombolas no Vale do Ribeira (SP).
Além disso, o Incra também disse que o estado de São Paulo possui um sistema eletrônico próprio para inscrição ambiental das propriedades rurais e que é o órgão estadual responsável pelo CAR que deve analisar as sobreposições apontadas.
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