Após repercussão de falhas na aplicação de vacinas, profissionais reforçam protocolos para afastar temor

SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Assim que um novo veículo encosta em uma das tendas de vacinação contra Covid-19 no drive-thru do estádio do Pacaembu, na zona oeste da capital paulista, os profissionais de imunização seguem o mesmo rito.

Um deles tira o frasco com a dose de vacina do isopor que o mantém refrigerado, introduz a agulha da seringa no vidrinho, aspira 0,5 ml de vacina, se dirige até o paciente que vai tomar a dose, mostra a seringa com o conteúdo líquido dentro, verifica em qual braço será dada a imunizante, faz a aplicação da vacina, mostra a seringa vazia, a descarta em local correto e coloca um curativo no braço da pessoa em caso de sangramento.

Tudo é feito na frente da pessoa vacinada e de seus acompanhantes e narrado passo a passo pelos profissionais para que todos compreendam o processo e tenham certeza de que a vacina foi aplicada.

Pode parecer cansativo, mas foi a maneira encontrada por trabalhadores da saúde para dar maior transparência ao processo e reduzirem a desconfiança da população, que resolveu acompanhar com lupa o trabalho deles após a repercussão dos casos de falha na aplicação da vacina contra a Covid-19 pelo país.

Vídeos mostrando vacinação com seringas vazias ou com o êmbolo sem ser empurrado circularam pela internet, colocando em xeque a confiança em um procedimento que não costumava levantar suspeitas.

“Tem sido complicado trabalhar sob desconfiança o tempo todo. Muitas pessoas querem pegar o vidro da vacina e segurar a seringa, o que pode causar contaminação. Fica todo mundo tenso”, conta a diretora de vigilância Carina Araki de Freitas, coordenadora da vacinação no drive-thru do Pacaembu.

Após relatos de cobranças e ofensas a profissionais, o Cofen (Conselho Federal de Enfermagem) tem orientado reforço nos protocolos a fim de deixá-los mais claros à população, como mostrar a seringa cheia e, após a aplicação, vazia.

Além disso, em São Paulo, é adotado o processo de dupla checagem. Tudo o que um profissional faz é acompanhado por outro.

“Mesmo que as pessoas não estejam atentas aos procedimentos ou distraídas filmando a vacinação, a gente faz questão de chamá-las para que acompanhem tudo”, conta Freitas.

Os profissionais também são orientados a responder a todos os questionamentos. A pergunta mais feita é qual a vacina que será aplicada. Trabalhadores da imunização nos postos de saúde da capital ouvidos pela reportagem relatam que algumas pessoas chegam a ir embora após ouvir que receberão vacina de determinado laboratório.

Uma enfermeira de uma unidade da zona leste da capital, que pediu para não ser identificada, afirmou que há pessoas que perguntam se tem vacina mesmo no frasco ou se é soro ou qualquer outro líquido.

Outro fato que tem incomodado bastante os profissionais é a alta exposição em razão de vídeos e fotos feitos sem autorização. O código de ética da enfermagem garante ao trabalhador o direito de não ser filmado durante o exercício da profissão.

“O usuário pode solicitar o nome e a função do profissional e filmar ou fotografar o procedimento, mas sem expor o profissional. No entanto, vemos que isso não tem sido respeitado, o que pode levar esses trabalhadores a quadros de estresse, burnout [esgotamento] e até afastamento”, adverte o presidente do Coren-SP (Conselho Regional de Enfermagem de São Paulo), James Francisco Pedro dos Santos.

O enfermeiro Michel de Oliveira Ramalho, 34 anos, diz que “triplicou o cuidado” ao explicar os procedimentos e responder às perguntas quando filmado. “Não posso falar nada que seja interpretado de maneira equivocada, pois a pessoa vai ver de novo o vídeo quando chegar em casa e entender outra coisa.”

Ele também diz que tem relevado quando as pessoas já chegam filmando sem pedir autorização, pois “é um momento de muita ansiedade pela vacina, e filmar pode ser uma forma de minimizar a desconfiança a respeito dos procedimentos”.

As irmãs Alessia de Lourdes Franco, 49, e Vilma Aparecida Franco, 53, sacaram os celulares e começaram a filmar a equipe de imunização assim que pararam o carro em frente a uma das tendas de vacinação do drive-thru do Pacaembu na última quinta-feira (18), onde foram levar a mãe, Josefa, 87, para receber a dose contra Covid-19.

“A gente filmou por medo de ter algum problema na aplicação. Depois que vimos vários casos, ficamos com muito medo de a minha mãe não ser vacinada. Seria muita injustiça uma pessoa tirar vantagem de uma idosa de 87 anos. E o vídeo também é para a gente eternizar esse momento tão esperado”, disse Alessia.

Antes de ir embora, a família ainda pediu um vidrinho da vacina para guardar de souvenir, mas saíram sem a lembrança, já que os frascos são devolvidos para serem reutilizados. “Uma pena que não podemos levar [o vidrinho], mas o importante é que vimos que ela recebeu mesmo a vacina”, falou Vilma.

Acompanhando a mãe Egle, de 88 anos, na vacinação, Tânia Person, 65, aprovou os procedimentos da equipe. “Achei que elas são muito didáticas e esclarecem todas as etapas da vacinação. Fiquei muito satisfeita com o atendimento. Erros acontecem e não podemos generalizar. Não é justo com essas pessoas que estão na linha de frente”, diz.

Com experiência de dez anos de imunização e voluntária na vacinação contra a Covid-19, a enfermeira Luciana Sapucaia, 49 anos, conta que muitos acompanhantes chegam a não dar o apoio necessário ao idoso, pois estão mais preocupados em filmar o procedimento.

“Tem gente que desce do carro para filmar, se aproxima da mesa de preparo da vacina, quer pegar o material para mostrar no vídeo e nem vê que o idoso tá quase caindo. Muitos chegam a ser invasivos com a gente.”

A enfermeira ainda diz sentir muito que a categoria esteja sendo julgada pela falha de alguns profissionais. “A sala de vacinação é a menina dos olhos de um posto de saúde. A gente faz vários cursos para aplicar diferentes tipos de vacina, além de tomar todos os cuidados para evitar contaminação. Quem está ali é uma pessoa capacitada, treinada e que não merece o julgamento que estamos sofrendo”, desabafa.

INVESTIGAÇÕES

Os conselhos regionais receberam 12 denúncias a cerca de falhas na aplicação de doses contra a Covid-19, segundo o Cofen.
Foram registradas seis denúncias no estado de São Paulo, três no Rio de Janeiro, duas em Goiás e uma em Alagoas. Há ainda um caso de um estudante de medicina que não teria aplicado a vacina no Rio, segundo o Cofen.

“Apesar de serem poucos casos, isso não é algo rotineiro na nossa profissão. Por isso precisamos entender o que houve em cada uma dessas ocorrências”, afirma Viviane Camargo, membro do comitê de crise e coordenadora da Câmara Técnica de Atenção à Saúde do Cofen.

Em caso de falha na vacinação, o profissional pode responder na esfera administrativa (por não ter seguido os protocolos estabelecidos pelo empregador), na ética (em que o conselho da categoria apura imperícia, imprudência e negligência) e na penal e cível (em que será averiguado se houve crime).

A apuração feita pelos conselhos regionais pode levar de seis meses a dois anos, como explica James Santos. “Após a denúncia recebida pelo conselho, abrimos procedimento administrativo para avaliar a questão. Isso passa pelo plenário, que julga a denúncia e a partir daí instauramos ou não o processo ético para que esse profissional seja ouvido e possa se explicar. Depois disso, ele será julgado e pode receber punição ou ser absolvido. Quando há provas materiais, como vídeos, esse processo costuma ser mais rápido. Se tivermos de apurar tudo, pode levar mais tempo.”

Na última quinta-feira, uma técnica de enfermagem de Niterói (RJ) foi indiciada por peculato e crime contra saúde pública após vídeo mostrar que ela não apertou o êmbolo da seringa ao vacinar um idoso em um posto de drive-thru da cidade. Em depoimento, ela disse que não saber explicar como cometeu a falha e afirmou estar “estressada e cansada”. Ela foi afastada das funções.

No último dia 10, uma enfermeira de Goiânia (GO) não aplicou o conteúdo da seringa ao vacinar uma idosa. O flagrante foi registrado em vídeo pela filha da paciente, que questionou a profissional. A idosa foi imunizada corretamente na sequência.

Em Maceió (AL), uma técnica de enfermagem foi afastada após também deixar de aplicar a dose em uma idosa de 97 anos, em 28 de janeiro. O erro foi constatado por um médico parente da paciente, após a cuidadora enviar o vídeo da vacinação a familiares. A idosa foi vacinada corretamente após a família mostrar as imagens no posto de saúde.
“Existe uma repercussão muito grande quando há esse tipo de falha e as pessoas tendem a gravar o negativo de uma maneira mais forte. Vacinamos todos os anos milhões de pessoas e isso não acontece. É muito difícil de acreditar que um colega tenha feito isso de forma proposital”, lamenta Camargo.
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CASOS POR ESTADO
– São Paulo: 6 (nas cidades de São Paulo, Franco da Rocha, São Pedro, Praia Grande e Taboão da Serra)
– Rio de Janeiro: 3 (Niterói, Petrópolis e Rio de Janeiro)
– Goiás: 2 (Goiânia)
– Alagoas: 1 (Maceió)

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