INGLATERRA (FOLHAPRESS) – Era uma vez, em um reino muito, muito distante, um príncipe que amava as artes (era aquarelista e tocava violoncelo), trabalhava duro (foi militar e aprendeu a pilotar helicópteros e aviões) e tinha bastante tempo livre, já que recebeu da família real o Ducado da Cornualha (que tem 530 km², um terço da cidade de São Paulo) para poder viver do aluguel dessas terras.
Em 1988, esse príncipe, Charles, hoje monarca do Reino Unido, uniu essas três excelentes qualidades (arte, trabalho, tempo) para criar uma cidade de conto de fadas.
E não é que funcionou? Bem, ela já foi criticada por políticos e arquitetos, mas, trinta anos após o início das construções, Poundbury é uma pitoresca cidadezinha de 1,6 km² que não tem nenhuma placa de trânsito ou semáforo, mas tem uma escola, um mercado, dois pubs, 200 empresas e 4.200 súditos leais.
Infelizmente, a reportagem não conseguiu ver nada disso na manhã desta segunda (8), ao chegar a Poundbury, a 210 km a sudoeste de Londres, pois a terrível neblina inglesa não permitiu enxergar a sete palmos de distância.
Horas depois, porém, ainda que sob chuva, foi possível checar as ruas em curva (desenhadas assim para que os motoristas dirigissem devagar), os playgrounds com brinquedos de metal (que poderiam ser assinados por artistas plásticos) e também a estátua que dá nome e orna a praça principal da cidade, chamada Queen Mother (trata-se de Elizabeth, a mãe de Elizabeth 2ª, avó de Charles).
Poundbury foi projetada para ser uma comunidade sustentável e reserva 35% de seu espaço para moradias sociais. Nas palavras de Françoise Ha, da associação local de moradores, isso significa “casas ou apartamentos que custam 20% menos do que o praticado no mercado imobiliário”.
O Ducado da Cornualha, que detém uma porção dessas moradias e as aluga ou vende, trabalha para que isso aconteça, mas o resultado não é tão social assim. Questionada sobre a presença de minorias, como indianos ou paquistaneses, que abundam em Londres, por exemplo, Ha diz que não há muitos por aqui. “Não sei por que eles não vêm”, comenta.
Talvez porque a moradia em Poundbury, que é colada na parte leste de uma cidade maior, Dorchester, custe 15% a mais do que em Dorchester. O que significa que o desconto social de 20% do Ducado já é quase totalmente anulado de saída. O Ducado da Cornualha, aliás, mantém um escritório na cidade, fiscalizando a cor das portas (só podem ser pintadas dentro de uma paleta pré-aprovada), as placas dos comércios (com grandes restrições de tamanho, e nunca iluminadas) e as antenas de satélite para TV a cabo (nunca, jamais, podem estar às vistas).
As ruas sem sinalização obrigam os motoristas a ficarem bem atentos. Há três anos, no entanto, um acidente fatal abalou a cidade. Um jovem motociclista abalroou o lado de uma van e morreu na batida. Segundo relatos locais, ele tinha acabado de tirar a habilitação.
“Como Duque da Cornualha, Sua Majestade acreditava que uma das maiores forças de nosso país era a variação regional de suas cidades e vilas, construídas com materiais locais distintos. A arquitetura de Poundbury se encaixa nesse padrão, respeitando os estilos locais, baseando-se na rica herança de Dorset [condado onde a cidade fica] e, em particular, nas ruas de Dorchester”, diz texto oficial sobre Poundbury.
Sua Majestade, na verdade, se interessa profundamente pelo assunto do urbanismo, tendo examinado os segredos do planejamento urbano e rural em seu livro “A Vision of Britain – A Personal View of Architecture” (uma visão da Grã-Bretanha – uma visão pessoal da arquitetura), lançado justamente na gênese de Poundbury, em 1989.
Charles também criou uma segunda cidade, Nansledan, a 420 km de Londres, no extremo oeste da ilha. Essa começou a ser erguida em 2011. No caso de Poundbury, as primeiras construções já datam de 30 anos atrás e ainda não terminaram. A quarta fase, que deve estar pronta em 2026, está sendo planejada para receber 800 moradores, completando, assim, 5.000 felizes súditos no total.
Apesar de orgulhosos pelo berço nobre, os moradores de Poundbury fizeram uma festa para lá de chinfrim nessa coroação. Na sexta-feira (5), o jornal regional Dorset Live publicou uma reportagem que começava assim: “Moradores e empresas na cidade do rei Charles estão entusiasmados com sua iminente coroação –mas alguns lamentaram a falta de bandeiras e decorações da Union Jack [bandeira do Reino Unido]”. De fato, mesmo após a neblina ter ido embora, não havia Union Jacks à vista por Poundbury.
Era uma vez um príncipe que amava as artes, trabalhava duro e tinha bastante tempo livre. Ele pensou na melhor cidade possível e, magnânimo, mandou construí-la a partir do zero. Mas nunca residiu lá, nem vai. Seu destino é morar, para sempre, nos suntuosos palácios espalhados por aquele reino muito, muito distante.
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