Água contaminada com chumbo expõe racismo ambiental em cidade nos EUA

WASHINGTON, EUA (FOLHAPRESS) – Garrafinhas de plástico são hoje um item fundamental em Benton Harbor. Elas são a única fonte segura de água nesta cidade de quase 10 mil habitantes. O encanamento do local, que fica 160 quilômetros ao sul de Chicago, está contaminado com chumbo. As pessoas já não podem beber água da torneira.

Esse desastre humanitário tem ganhado peso no debate nacional, tomando contornos de mais um caso de desigualdade racial. Cerca de 85% da população de Benton Harbor é negra. É antiga –e não resolvida– a conversa sobre como os investimentos públicos desfavorecem essa fatia da demografia. Fala-se, nos Estados Unidos, de “racismo ambiental” para descrever o fenômeno da segregação que empurrou as populações não brancas para bairros mais danificados pelas indústrias e pela contaminação.

“Imagine que fosse uma cidade branca”, afirma Edward Pinkney, ativista de direitos ambientais e líder do Conselho de Água da Comunidade de Benton Harbor. “Deixe-me descrever uma cena: uma mulher branca com um bebê em seu colo, dizendo que o chumbo vai matá-lo.

O governo enviaria o Exército, a Guarda Nacional, o presidente Joe Biden viria aqui. Conosco, não ligam.”

O caso de Benton Harbor tem enfurecido as lideranças locais não apenas pela questão racial, mas também porque repete enredos já memorizados, como o de Flint. A cidade foi manchete em 2014 por um escândalo semelhante de contaminação por chumbo. Estima-se que 100 mil pessoas foram expostas à água envenenada pelo perigoso metal.

“Esperávamos que as autoridades tivessem aprendido algo, mas não aprenderam”, diz Pinkney. Mais do que isso, ele acusa a prefeitura de Benton Harbor de negligência. O ativista afirma que dados das próprias autoridades já apontavam a contaminação há pelo menos três anos, mas os encanamentos ainda não foram trocados –e pode levar até dois anos para isso acontecer de fato.

A reportagem entrou em contato com a prefeitura de Benton Harbor, mas não obteve uma resposta.

Em 2018, testes detectaram uma contaminação de 22 ppb (partes por bilhão) de chumbo, acima do nível de 15 ppb, considerado uma linha vermelha pelas autoridades de saúde. Não existe nenhum valor seguro do metal para o consumo humano, e os riscos à saúde incluem dano cerebral. A contaminação por chumbo é resultado de uma série de fatores, como por exemplo, a corrosão de encanamentos antigos.

Ativistas afirmam que o assunto só capturou a atenção do restante do país quando diversas organizações enviaram uma petição conjunta às autoridades ambientais dos EUA. Ameaçaram, também, processar o governo. Neste mês, foi decretado um estado de emergência. “Se não tivéssemos entrado em ação, nada aconteceria. Você nem teria me telefonado”, afirma Pinkney.

Ele elogia os esforços de distribuição gratuita de garrafas de água como alternativa ao líquido contaminado com chumbo. Diz, porém, que é tão eficiente quanto colocar um band-aid em um ferimento causado por um tiro.

O que pode, por fim, sanar o problema, para o ativista, é a proximidade da eleição para o governo de Michigan. “Os políticos sabem que o problema não pode se alongar até o pleito estadual, no ano que vem.” Gretchen Whitmer, atual governadora do estado, recentemente visitou a cidade. Para Pinkney, a solução da crise de água vai ser um elemento central para a campanha eleitoral.

As comunidades locais, porém, mostram cansaço com um modelo de gestão em que as autoridades só implementam políticas públicas quando chega a hora de garantir o voto nas urnas. O problema, segundo esses grupos, é maior –e reflete um descaso histórico com partes específicas da população.

“Está bastante claro que há um padrão de desinvestimento em infraestrutura, assim como um padrão de desinvestimento específico nas comunidades de cor”, afirma a jornalista Anna Clark, baseada em Michigan. Ela é autora do livro “The Poisoned City” (a cidade envenenada), sobre o caso de Flint. “Esse tipo de situação tem consequências de vida ou morte para as pessoas”, diz.

Clark afirma que, assim como em Flint, o desastre em Benton Harbor é resultado de más decisões tomadas no passado. Não pode ser um problema de escassez, afinal. Benton Harbor está nas margens dos famosos Grandes Lagos. “Nós temos muita água. Este não é um desastre natural”, diz a jornalista.

Há casos semelhantes em outras partes do país, onde as autoridades também negligenciaram a infraestrutura da água. Não por acaso, no plano de investimento que serve de bandeira à administração Biden, uma das propostas é trocar os encanamentos contaminados com chumbo. O governo de Michigan diz que, sozinho, precisa de mais de R$ 160 milhões para tocar essa obra.

Benton Harbor, porém, não pode esperar anos até que todos os canos sejam substituídos. “As pessoas precisam de água para beber hoje e todos os dias”, diz Clark. Não apenas para beber, aliás. Os moradores dessa cidade não podem contar com a água que vem da torneira para realizar uma série de tarefas íntimas e mundanas, como escovar os dentes e passar um café. “Muitos de nós somos privilegiados por não ter que pensar em como a água afeta tantas pequenas partes da nossa vida.”

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