(FOLHAPRESS) – Lavar a roupa suja, estender, dobrar, passar e guardar roupa, varrer a casa, tirar o pó, limpar o chão e o banheiro, tirar o lixo, organizar os armários, aguar as plantas, fazer compras, guardar as compras, fazer comida, lavar a louça.
Dar banho na criança, vesti-la e penteá-la, dar comida à criança, levar a criança para a escola, buscar a criança na escola, levar a criança ou idoso ao médico, comprar remédios e dá-los à criança ou ao idoso, levá-los para fazer exames, tomar vacinas ou passar por tratamentos médicos, brincar com a criança, estudar com a criança, levar o idoso ao banco.
Alimentar o pet, limpar a sujeira do pet, levar o pet ao veterinário ou para passear, pagar as contas de casa, conferir se é preciso comprar roupa, sapato ou material escolar para a criança, ir à reunião de pais da escola.
Estes são alguns exemplos da economia do cuidado: uma série de tarefas domésticas e de esforços com dependentes (crianças, idosos, doentes ou pessoas com deficiência) que precisa ser realizada para que todos produzam e cumpram seu papel na sociedade.
Mas existe um fator de discriminação nessa economia do cuidado: 65% do trabalho é feito por mulheres. Se fosse computado, esse esforço acrescentaria ao menos 8,5% ao PIB (Produto Interno Bruto) do país, segundo pesquisadores do FGV Ibre (Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas).
No total, incluindo as tarefas executadas por homens, a economia do cuidado representa 13% do PIB.
O assunto ganhou relevância no domingo passado (5), quando o Enem (Exame Nacional do Ensino Médio) propôs como tema da redação “Desafios para o enfrentamento da invisibilidade do trabalho de cuidado realizado pela mulher no Brasil”.
“Na nossa sociedade patriarcal e machista, o cuidar sempre foi uma tarefa relegada à mulher, enquanto ao homem compete trabalhar”, diz a economista Hildete Pereira de Melo, mestre em engenharia de produção e doutora em economia industrial e da tecnologia.
A economia do cuidado é essencial para o bem-estar de todos, para que a engrenagem social funcione, mas não é valorizada, diz Hildete, professora da Faculdade de Economia da UFF (Universidade Federal Fluminense) e editora da Revista Gênero.
“Pior que isso: serve para limitar o direito da mulher a uma melhor qualidade de vida e a ascender na carreira. O seu tempo livre é dedicado aos outros”, diz.
Em dezembro de 2007, Hildete e outros dois pesquisadores -os economistas Claudio Considera e Alberto Di Sabbato– publicaram o artigo “Os afazeres domésticos contam!”, quando usaram como base a quantidade de horas dedicadas a tarefas domésticas declarada na Pnad (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios) por homens e mulheres.
À época, essa quantidade de horas foi multiplicada pelo rendimento médio das trabalhadoras domésticas. A conclusão é que o tempo gasto com os cuidados com o lar e a família correspondeu a 11,2% do PIB, em média, entre os anos de 2001 e 2005.
Em outubro deste ano, Hildete, Considera e a pesquisadora do FGV Ibre Isabela Duarte Kelly atualizaram o estudo, considerando os dados da Pnad Contínua entre 2016 e 2022. Chegou-se à cifra de ao menos 13% do PIB brasileiro, em média, se o trabalho com a casa e a família fosse remunerado.
A cifra é considerada subestimada porque, nos cálculos, os pesquisadores multiplicaram as horas gastas no trabalho invisível pela remuneração do trabalho doméstico, uma das mais baixas do país. As mulheres dedicam, em média, 21,3 horas por semana à economia do cuidado. Os homens gastam 11,1 horas.
Outras profissões de cuidado com pessoas -como professores, babás e cuidadores- têm remuneração mais alta que a dos trabalhadores domésticos, o que elevaria o valor do trabalho invisível e, portanto, a porcentagem do PIB que ele representa.
A pergunta do IBGE na Pnad Contínua, porém, não especifica quanto tempo vai para trabalhos domésticos e quanto é destinado a cuidar das pessoas, o que impede uma contabilidade mais precisa, diz Considera, ex-diretor do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) e coordenador do Núcleo de Contas Nacionais do FGV Ibre.
A alta de 11,2% para 13% do PIB entre os dois períodos, segundo os pesquisadores, se deve ao aumento da remuneração das domésticas.
“Não se trata aqui, obviamente, de propor uma remuneração à mãe, à filha, irmã ou qualquer mulher na família que desempenhe a tarefa de cuidados com o lar e com as pessoas que nele vivem”, diz Considera.
“Mas de apontar que o trabalho delas é tão relevante que representa um percentual importante para a economia do país. É tempo dedicado aos outros, que precisa ser melhor compartilhado com os demais integrantes da família.”
Há também custos indiretos. Na opinião da pesquisadora Isabela Duarte Kelly, a mulher sobrecarregada com trabalhos domésticos e de cuidados com os outros não só prejudica a própria qualidade de vida, como perde chances de ascender na carreira.
“Se ela é funcionária, não terá a mesma liberdade de horários e viagens que um colega homem, porque será cobrada a cuidar do lar”, diz Isabela.
O mais comum, segundo a pesquisadora, é que a mulher escolha trabalhos de meio período ou que ela possa fazer em casa, para conciliar as atividades de cuidados. “Nesses trabalhos, na maioria das vezes, ela ganha menos.”
É o caso de Viviane Gil Brandão, 47. O dia dela começa às 5h da manhã e só termina às 23h. Viviane é mãe de Davi, 11, e separada do pai dele. Fez faculdade de marketing e de serviços sociais, mas trabalha como cabeleireira na sala de casa, a fim de conciliar a profissão com os cuidados com Davi e o lar. Também apoia os pais sempre que ficam doentes. Não tem tempo para cuidar de si mesma.
“Meu repouso é no curso de corte e costura que faço de manhã”, brinca Viviane.
Ela deixa de atender clientes às segundas e quartas à tarde para levar o filho à escolinha de futebol. “Ele adora”, diz. “Mas em compensação, fico o sábado todo trabalhando, e às vezes no domingo.”
Única mulher de três irmãos, Viviane diz que a mãe também cobrava que os filhos homens fizessem tarefas de casa. “Mas a maior cobrança era em cima de mim”, lembra.
“Hoje eu ensino meu filho a lavar a louça, arrumar a cama, e até a receber minhas clientes. Digo que ele precisa aprender a fazer para cuidar da casa dele, com a mulher.”
O estudo do FGV Ibre apontou diferentes graus de discriminação de acordo com a região do país.
“As mulheres do Nordeste são as que mais dedicam tempo à economia do cuidado: 22,3 horas por semana, contra 10,9 horas dos homens”, diz Hildete.
O Centro-Oeste é onde tanto mulheres quanto homens menos dedicam tempo aos cuidados: 18,7 e 9,8 horas por semana, respectivamente.
No Brasil, o salário dos homens é 26,8% maior do que o das mulheres, em média. Considerando por região, porém, os estados do Norte e Nordeste apresentam a menor diferença salarial entre os sexos: 13,1% e 14,5%, nesta ordem. “São também os estados com os menores salários médios”, diz Hildete.
No Sul, está a maior discrepância salarial: R$ 3.504 para eles e R$ 2.639 para elas, uma diferença de 33%.
Quanto mais instrução, mais renda e terceirização do cuidado
À medida que a mulher melhora o seu nível de instrução, o tempo dedicado aos trabalhos domésticos e aos cuidados com a família diminui.
De acordo com o estudo, mulheres sem instrução ou com o ensino fundamental incompleto dedicam 23,3 horas por semana à economia do cuidado, contra 18 horas das que têm a formação superior completa.
“Possivelmente, as mulheres que estudaram mais ganham mais e podem terceirizar parte das tarefas de cuidados, pagando por isso”, diz Hildete.
Os especialistas apontam que, para além do machismo estrutural na sociedade, o Estado tem condições de prover parte desses cuidados, com creches e escolas em período integral, assim como asilos públicos, hoje escassos no Brasil.
“É preciso garantir escolas e creches em período integral, com opções inclusive nos fins de semana, para mulheres que têm a necessidade de trabalhar aos sábados e domingos”, diz Isabela.
Outra questão está relacionada à licença-maternidade: hoje a lei brasileira prevê 120 dias para as mães e de apenas cinco dias para os pais -embora um projeto de lei de licença parental preveja 120 dias para qualquer cuidador.
“A partir do momento que o próprio Estado considera que compete apenas à mãe cuidar da criança nos primeiros meses de vida isso só reforça estereótipos”, afirma a pesquisadora.
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