URV: a unidade de valor que não era moeda e obrigou brasileiros a fazer contas de cabeça para saber quanto pagar

Até o real passar a valer como a nova moeda do Brasil em 1º de julho de 1994, os brasileiros conviveram com a URV – Unidade Real de Valor, que não era exatamente uma moeda, mas foi um índice balizador para o período de transição do cruzeiro para o real.

Ela esteve vigente por 18 meses e, ao longo do período, exigiu exercícios matemáticos dos consumidores, o que deixava as compras no mercado não só difíceis de carregar como de calcular quanto custava cada item.

Criada pelo então ministro da Economia, Fernando Henrique Cardoso, a URV tinha paridade com o dólar – 1 URV = 1 dólar –  e era calculada diariamente — sempre para mais. Em 1º de março de 1993 começou custando CR$ 647,50, e terminou em 30 de junho a CR$ 2.750.

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“A URV surge em uma época de tentativa de estabilização depois de vários planos, como o Bresser, o Collor 1, Collor 2. Era um momento extremamente conturbado, com o objetivo de combater a inflação. Nenhum desses planos conseguiu isso por mais que três meses. A unidade real acabou se mostrando uma decisão mais plausível”, explica Guilherme Moura, professor de Economia da Universidade Positivo.

E não adianta procurar por notas ou moedas de URV, porque elas não existem. Naquela época, era algo surreal, mas aconteceu: era “um dinheiro” que a população não tinha acesso físico. Continuava-se usando os cruzeiros reais, porém, na hora de fazer qualquer pagamento, era necessário fazer a conversão do valor — as complexas contas eram feitas de cabeça em boa parte das vezes, numa época em que nem se imaginava ter um smartphone à mão.

Para entender melhor por que a URV foi criada, Moura dá um contexto mais amplo sobre o que é uma moeda. Ela deve ter três características: ser usada no comércio, usada em contratos e que seja possível de guardá-la.

Ainda que o cruzeiro real, o cruzeiro e o cruzado fossem aceitos no comércio, a volatilidade era imensa, por conta da inflação — as famosas “remarcações”. Nem sempre a moeda era usada como balizador de contratos, já que era muito comum acordos fechados em dólar, moeda mais estável; e era praticamente impossível guardar o dinheiro, porque perdia o valor rapidamente.

No caso da URV, era possível recuperar algumas das funções básicas de uma moeda, como a capacidade de guardá-la (ainda que virtualmente) e de fechar contratos usando ela, e não o dólar.

“A URV não variava de preço como o cruzeiro real flutuava. Então, acabou gerando um efeito psicológico interessante na população, que era ver o mesmo preço praticamente todo dia no mercado”, afirma, mesmo lembrando que a URV, por não ser uma moeda física, tinha que constar nas etiquetas de preços para que as pessoas pudessem fazer as contas.

Cálculos diários no mercado

O professor de Finanças e coordenador da Liga de Mercado Financeiro e de Capitais na Escola de Economia e Negócios da PUC-Campinas Eli Borochovicius era um jovem que já entendia de economia, mas que achava curioso ter que fazer contas além da simples soma dos produtos no mercado.

Ao mesmo tempo, o professor tem uma lembrança muito forte daquela época: antes da URV, quando o pai recebia o salário, a família toda corria ao supermercado e fazia uma compra imensa — o que ficou conhecida como a “compra do mês”, uma prática que os brasileiros perderam por um tempo, mas que voltou recentemente com a escalada da inflação.

“Minha mãe mandava meus irmãos e eu [eram três filhos ao todo] para cada lado, pegar os produtos com as etiquetas de preço que tinham, para evitar que fossem remarcados. Enchíamos quase três carrinhos inteiros. Acredito fortemente que essa cultura que muitas famílias tem começaram nessa época. Em 1993, só para se ter uma ideia, a inflação foi de 2.477,15%. Era praticamente impossível fazer qualquer coisa”, conta.

Borochovicius ainda deu um exemplo de como os preços eram. Se hoje um pacote de açúcar refinado de 1kg custa R$ 4,59, se a inflação atual fosse igual a de 1993, o mesmo produto custaria R$ 118,29. Um pacote de feijão carioca, hoje a R$ 9,49, custaria inacreditáveis R$ 244,57.

A URV foi vista como uma forma de “acalmar” os ânimos, mantendo os preços mais estáveis.

O professor conta que, por conta dos valores ‘quebrados’ da URV, era mais fácil para as pessoas fazer o cálculo arredondando para cima. Por exemplo, no último dia, em 30 de junho de 1994, a URV custava CR$ 2.750. A conta era feita como se valesse CR$ 3 mil. O comerciante, porém, tinha que fazer o cálculo correto, para evitar perdas.

A “moeda que não era moeda” conseguiu estabilizar o mercado brasileiro e abrir terreno para a chegada do real, que se firmou como a moeda brasileira.

Este conteúdo foi originalmente publicado em URV: a unidade de valor que não era moeda e obrigou brasileiros a fazer contas de cabeça para saber quanto pagar no site CNN Brasil.