SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Há quase cinco anos, a pernambucana Maria José da Costa, 60, enfermeira aposentada, viu a vida virar do avesso com a morte da filha, Raynéia Gabrielle Lima, assassinada em Manágua, na Nicarágua.
Desde então, ela vive uma rotina que inclui falar com advogados e ativistas em busca de justiça. “Eu já movi o mundo”, conta à reportagem, por telefone, de sua casa em Caruaru, onde vive com seis cachorros que tirou da rua –Raynéia sonhava abrir um abrigo para animais, e a mãe, da maneira que pode, coloca de pé o desejo da filha única.
Raynéia foi morta a tiros no ápice dos atos contra a ditadura de Daniel Ortega e Rosario Murillo, a dupla de sandinistas que, a despeito de ter combatido um regime autoritário no final dos anos 1970, ergueu na última década um sistema repressor e autocrático.
Maria José afirma não ter recebido do Estado ajuda para esclarecer as circunstâncias da morte da filha, e pessoas familiarizadas com o caso descrevem como uma inércia a postura de instituições brasileiras.
Mas, sob o governo Lula 3, a mãe de Raynéia diz ver uma esperança. Ainda que o governo tenha tardado a adotar postura crítica em relação a Ortega, Maria José se fia à defesa dos direitos humanos, bandeira da atual gestão, para acreditar que algo possa mudar.
O caso de Raynéia é analisado pelo Ministério Público Federal (MPF), que há um ano abriu uma investigação criminal. Há cerca de dez dias, conforme a reportagem apurou, o órgão deu início a um processo de cooperação internacional e deve pedir à Nicarágua acesso a documentos e informações sobre o caso, que corre em sigilo.
A brasileira, uma estudante de medicina, não era uma manifestante anti-Ortega. Foi assasinada quando dirigia em um bairro nobre de Manágua. Poucos dias depois da morte, um segurança privado assumiu o crime, mas a família e pessoas envolvidas afirmam se tratar de um bode expiatório para encobrir a participação de paramilitares aliados do regime.
Pierson Gutiérrez Solís, o assassino confesso, foi julgado e condenado a 15 anos de prisão, em um processo ao qual a família de Raynéia não teve acesso. Mas um ano após ser preso, ele foi beneficiado com uma lei de anistia, um mecanismo aprovado pelo Legislativo aliado a Ortega, que deixou impunes atores responsáveis pela repressão no ano de 2018.
Para especialistas em direito internacional e interlocutores do Itamaraty, a ação do MPF pode ter uma relevância simbólica, mas será provavelmente infrutífera do ponto de vista prático. A depender de futuros desdobramentos, a iniciativa encontra respaldo na lei para analisar crimes cometidos por um estrangeiro, como Pierson, contra um cidadão brasileiro. Mas há entraves para casos em que a pena já foi cumprida ou extinta, como ocorreu com o nicaraguense.
O desenrolar do processo mostra como tentativas de diálogo com Manágua já foram frustradas. Uma das portarias do caso indica que a Secretaria de Cooperação Internacional da Procuradoria-Geral da República (PGR) relatou “insucesso nas tentativas de obtenção de informações sobre o caso com o ponto de contato da Nicarágua”.
Assim, a expectativa em relação ao caso da brasileira, um elo entre o regime autoritário centro-americano e Brasília, mora em uma ação que corre a milhares de quilômetros, na CIDH, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos, baseada em Washington, nos EUA.
Em outubro passado, esse braço da OEA (Organização dos Estados Americanos) acolheu uma petição apresentada por Maria José para avaliar o caso de Raynéia, em uma ação que acusa o Estado da Nicarágua de não ter investigado o caso de maneira adequada.
A panamenha Esmeralda Trotiño, comissária responsável pelo caso na CIDH, disse à reportagem que ele já foi avaliado e que a comissão prepara um informe final a ser revelado em breve.
Ela afirma que o caso de Raynéia só pode ser compreendido junto ao contexto de repressão do regime. “Trata-se de um regime de terror, que quer acabar com todos os direitos de liberdade de expressão. É uma ditadura com nível inimaginável de controle da vida dos cidadãos.”
A diplomacia brasileira, quando instada na comissão, tem se manifestado de maneira crítica ao fato de Pierson ter sido anistiado.
As denúncias internacionais contra a ditadura de Ortega-Murillo se multiplicam. Há duas semanas, um relatório da ONU disse ter identificado ao menos 40 casos de execuções extrajudiciais praticadas por policiais ou paramilitares ligados à ditadura em 2018.
No material, o Conselho de Direitos Humanos recomenda que os Estados iniciem processos legais contra indivíduos responsáveis por abusos de direitos humanos e outros crimes na Nicarágua.
Para Paulo Abrão, professor visitante da Universidade Brown e ex-secretário executivo da CIDH, o chamado dos especialistas deveria ser ecoado no Brasil. “Havendo uma vítima brasileira, o Estado estaria habilitado para abrir uma investigação sobre as responsabilidades penais dos autores materiais e intelectuais desse assassinato, uma vez que o Estado de origem não adorou medidas para isso.”
Mas, acrescenta Abrão, há pouca jurisprudência no Brasil de casos que privilegiem a proteção dos direitos humanos a nível internacional. “O caso Raynéia seria uma importante oportunidade de afirmação dos princípios do direito internacional e dos direitos humanos dentro do Brasil, transformando-se num precedente do alinhamento da Justiça com o compromisso com promoção da justiça internacional.”
Uma das únicas testemunhas oculares da morte da estudante de medicina, seu namorado, há anos não é encontrado por Maria José e seus advogados. Os poucos que estiveram com Raynéia após ela ser alvejada por tiros, porém, lembram que os relatos eram de que paramilitares estiveram envolvidos.
Ernesto Medina, 70, ex-reitor da Universidade Autônoma da Nicarágua, onde a brasileira estudava, é um dos que se recorda desses relatos. Ele esteve com Raynéia no hospital militar onde ela foi atendida, o mesmo local onde ela fazia residência médica. Ali, médicos –e amigos– da brasileira prestaram socorros, até que ela morreu na sala de operação.
Medina é, ele próprio, vítima da ditadura. Crítico ao regime, chegou a participar de mesas de negociação para tentar uma saída democrática. Mesmo no autoexílio na Alemanha, não foi poupado. Ele integra a lista dos mais de 300 dissidentes expatriados por Ortega em fevereiro, e o regime confiscou sua aposentadoria.
Mas ele ainda crê que o diálogo, como propôs o Brasil em uma recente manifestação na ONU, é a alternativa. “É a única saída civilizada, mas muito difícil. Ortega nunca teve vontade de chegar a acordos, nunca cumpriu nada. Se países como o Brasil organizam essa proposta, há que ter garantias, definir muito bem as regras do jogo.”
A reportagem entrou em contato com a embaixada da Nicarágua no Brasil na manhã da última sexta-feira (10), por email e por telefone, mas não obteve um posicionamento até a publicação deste texto.
Enquanto isso, Maria José segue à espera de respostas. “Quero que os verdadeiros responsáveis sejam punidos, mas não posso contar com nada da Nicarágua.”
Com dificuldades para se sustentar apenas com a aposentadoria, ela tem feito alguns serviços temporários em uma escola da região. A atividade, que nasce da necessidade econômica, a tem ajudado para além disso.
“De algum modo, eu perdi uma [filha], mas indiretamente consegui o carinho de mil [crianças]. Eles me tratam muito bem. Se não vou à escola, já ficam preocupados com a ‘tia’ Maria José.”
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