(FOLHAPRESS) – “Olha o buru!” Buru, na linguagem dos garimpeiros, é helicóptero. Alguém, no meio da confusão no portinho do Arame, gritou ter avistado um buru no céu. Foi o suficiente para transformar confusão em caos. Garimpeiros se entocaram no mato. Embarcações foram arrastadas nas águas do rio Uraricoera para serem escondidas. Caminhonetes deram marcha a ré.
Era um alarme falso. Não havia helicóptero nenhum se aproximando do portinho. O medo era de mais uma ação do Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis) e de forças policiais federais para retirada dos mais de 20 mil invasores da Terra Indígena Yanomami. Uma operação está em curso há uma semana.
O temor se dissipou rápido, na mesma velocidade do buru imaginário. O portinho clandestino voltou do caos à confusão em minutos, e retomou o seu aspecto de fuga e êxodo, cada vez mais intensos nos últimos dias. Os garimpeiros seguiram seus caminhos de volta, após meses ou anos de atividade predatória na maior terra indígena do Brasil.
O porto do Arame é, hoje, o maior entreposto da fuga por terra e água de milhares de garimpeiros que exploravam ouro e cassiterita no território tradicional.
Quem não tem dinheiro ou ouro suficiente para um voo acaba caminhando por dias na floresta, até alcançar um barco. De barco, são mais um ou dois dias até o portinho. De lá, mais duas ou três horas na caçamba de uma caminhonete, até a vila Reislândia -ou Paredão-, que pertence ao município de Alto Alegre (RR), aparecer no horizonte. A saga continua para múltiplos destinos.
A Folha de S.Paulo acompanhou um dia de fuga dos garimpeiros, com os garimpeiros. Neste domingo (12), a reportagem fez o percurso de Reislândia ao porto clandestino na cabine de uma caminhonete; permaneceu no Arame para documentar a chegada dos barcos e conversar com os invasores; e voltou na carroceria de uma segunda caminhonete usada para transportar as pessoas para fora dali.
O contato com os garimpeiros, nesse contexto de fuga, temor, vulnerabilidade e movimento incessável, permite traçar um perfil difuso dessas pessoas e compreender as dificuldades do caminho de volta após o início da retomada da terra indígena.
Um garimpo tem várias camadas. Se uma simplificação é possível, essas camadas podem ser resumidas em duas: a de trabalhadores braçais da exploração de ouro, que são migrantes vindos de diferentes partes do país (especialmente do Maranhão) e da Venezuela, e a de operadores da logística que ganham dinheiro para viabilizar essa exploração, inclusive na atual fase de desintrusão.
Quem está fazendo as varações pela mata e lotando as embarcações -um barco de 12 metros carrega até 40 pessoas de uma vez- são os trabalhadores braçais do garimpo. São raizeiros (trabalhador braçal que arranca as raízes das árvores para a escavação da terra), jateiros (quem opera os grandes jatos d’água para revirar a terra), cozinheiras, prostitutas.
Ao longo dos dias, com a intensificação das ações de destruição de maquinários e aeronaves pelo Ibama e pela PF (Polícia Federal) e com a maior presença da Força Nacional de Segurança Pública, aumentou o fluxo de barcos no portinho clandestino.
No período em que a reportagem esteve no local, seis barcos aportaram por lá. Quatro estavam abarrotados de gente. Dois chegaram mais vazios.
As pessoas transportam suas roupas, galinhas, cachorros, TVs, antenas de internet. O percurso custa quatro gramas de ouro (pouco mais de R$ 1.000). Uma vaga na carroceria de uma caminhonete, mais R$ 400.
No sábado (11), o fluxo foi igualmente intenso. Quem trabalha no transporte contou 20 caminhonetes cruzando a estrada quase intransitável ao longo do dia, cada uma transportando de 10 a 12 garimpeiros na carroceria. Assim, mais de 200 invasores deixaram a terra indígena num único dia, somente pelo porto do Arame.
Ao longo das duas horas e meia no caminho de volta, na carroceria de uma caminhonete, a reportagem dividiu o parco espaço com uma grande quantidade de galões, abarrotados de mantimentos e roupas, e com dois garimpeiros que prosseguiam no longo caminho de volta.
A história dos dois maranhenses, na faixa dos 40 anos de idade, é um resumo do que ocorre na linha de frente de um garimpo.
Shrek -no garimpo, todo mundo tem um apelido, e quase ninguém diz seu nome- ficou dois anos e dois meses na exploração de ouro nos rios que cortam a terra indígena. Ele faz isso desde a década de 80. Já garimpou na Guiana Francesa e já esteve na terra yanomami em diferentes fases da exploração predatória.
Garoto de Ipanema teve uma experiência bem curta: três meses. Sempre trabalhou na construção civil. No território amazônico, foi acometido por sucessivas malárias. Atuou como raizeiro. Não quer voltar. “Não valeu a pena.” Ele pretende retornar ao Maranhão.
O destino de Shrek é mais incerto. Ele segue entusiasta da lógica do garimpo ilegal. “Já enriquei e já fiquei pobre três vezes no garimpo”, disse. “Quando que eu consigo comprar um sítio desse [aponta para um sítio no percurso feito] se não for garimpando?”
A Guiana e a Guiana Francesa serão os destinos de diversos garimpeiros com quem a reportagem conversou. Parte deles já esteve em garimpos nesses países, que ficam próximos de Roraima -o estado fica na fronteira do país com a Guiana.
“Vou procurar outro lugar. Vou para a Guiana Francesa, a mais comentada. O risco é maior, mas tem mais chance de achar ouro”, disse Chucky, 24. Ele é garimpeiro desde os 17 anos, quando terminou o ensino médio em Boa Vista (RR). Os irmãos mais velhos também estão no garimpo. Um tem um barco. O outro, maquinário. “Garimpo é independência.”
No porto do Arame, o som é dos motores dos barcos subindo e descendo o rio, mais o das falas simultâneas dos garimpeiros em busca de transporte para Reislândia. “Saímos do garimpo, chegamos ao Brasil”, disse um passageiro de um dos barcos, já em terra.
O cheiro é o de lixo, roupas e materiais queimados, num processo de incineração constante. Uma caminhonete queimada por policiais numa operação passada permanece no mesmo lugar. O temor de quase todos ali é perder objetos de valor -inclusive gramas de ouro- em ações de fiscalização e desmobilização da invasão.
Cida, 49, e Maria Rita, 46, chegaram no fim de tarde ao portinho clandestino. Uma é de Boa Vista (RR), a outra, de Pinheiro, no Maranhão. As duas trabalharam como cozinheiras no garimpo.
Cida quer seguir adiante na atividade. “Vou para a Guiana. Lá não tem essa pressão que está tendo aqui.” Rita, depois de um ano no rio Uraricoera, só quer ir embora. “Vim para juntar um dinheiro e comprar uma casa. Não deu. Vou voltar para o Maranhão, trabalhar em roça e na quebra de coco.”
Louro, 48, também é maranhense e uma parte de sua vida foi em Borba (AM). A outra foi no garimpo. “Estou desde os 14 anos no garimpo. Já garimpei aqui, em Rondônia, no Pará, no Amazonas e em Mato Grosso.”
Depois de aportar no Arame, ele seguiu o caminho de volta na carroceria de uma caminhonete até Reislândia. Louro tem 12 filhos. Teve carteira assinada por menos de dois anos, quando trabalhou na construção de hidrelétricas em Rondônia. “É uma vida muito difícil de garimpeiro. É o tempo todo fugindo de polícia e sendo tratado como bandido.”
O crescimento e a consolidação do garimpo ilegal na terra yanomami, permitidos e estimulados pelo governo Jair Bolsonaro (PL), provocaram uma crise humanitária, sanitária e de saúde entre os indígenas, com explosão dos casos de malária, desnutrição grave e infecções respiratórias -doenças associadas à fome.
Yanomamis de comunidades em regiões como Surucucu e Auaris se viram empurrados e pressionados pelo garimpo ilegal -algumas aldeias foram cooptadas pela atividade garimpeira. Os indígenas encolheram suas plantações, não têm água potável para beber e nem para tomar banho. Não conseguem pescar. A caça foi afugentada.
O governo Lula (PT) declarou no dia 20 do mês passado estado de emergência em saúde pública, com ações de assistência médica na terra indígena. Depois, o governo deu início à Operação Libertação, para retirada dos invasores do território, com participação de agentes de Ibama, Funai, Força Nacional de Segurança Pública e Forças Armadas. A operação deve durar entre seis meses e um ano.
No caminho entre Reislândia e o porto do Arame, dois grupos de indígenas irromperam na estrada. Cada um com três yanomamis adolescentes ou crianças. Uma está grávida, com a gravidez avançada. Caminhavam sozinhos, sem um adulto por perto, tentando alcançar algum lugar que não a terra indígena. Às caminhonetes abarrotadas de garimpeiros, pareciam invisíveis.
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