BUENOS AIRES, ARGENTINA (FOLHAPRESS) – O fato de a Constituição do Peru prever o mecanismo da dissolução do Congresso pelo presidente, desde que cumpridas certas condições, esteve no centro do debate em relação ao que ocorreu no país nesta quarta-feira (7), por parte do então presidente Pedro Castillo.
Ao determinar o fechamento do Parlamento unicameral e a instauração de um estado de exceção, tentando se antecipar à análise de uma moção de vacância, o político populista foi prontamente acusado de tentar um golpe de Estado –por opositores e pela própria vice. Horas depois, os deputados ignoraram os decretos e destituíram o presidente, empossando Dina Boluarte. Castillo terminou o dia preso, acusado de rebelião e conspiração.
Especialistas ouvidos pela reportagem concordam com a ideia de que, em algum ponto do processo, houve uma tentativa de golpe, embora de forma diferente daqueles que a região viveu principalmente nos anos 1970.
“É um golpe de Estado, com todas as letras”, diz a advogada e analista política Rosa María Palacios, reforçando que não era recente o desgaste político de Castillo. “Não por se tratar de um professor rural, pobre, mas porque ele mesmo reconhecia que as pessoas que escolheu para formar suas equipes cometeram delitos no próprio mandato.”
Os 16 meses de mandato do político, eleito em 2021 como uma espécie de outsider sem experiência prévia, foram marcados por tensões constantes com o Legislativo. Com as sucessivas crises, ele se viu obrigado a formar, por exemplo, cinco gabinetes.
Will Freeman, professor da Universidade de Princeton, considera o episódio menos um golpe e mais “uma manobra institucional de sobrevivência, uma tentativa do Executivo de tomar o controle político do país, mas que evidentemente fracassou”.
Segundo ele, especialista em política do Peru e da Colômbia, o ponto central é o não envolvimento das Forças Armadas, “que mostraram sua rejeição e falta de interesse em participar do autogolpe”. Na sequência do pronunciamento de Castillo, o comando militar emitiu uma nota dizendo que “qualquer ato contrário à ordem estabelecida” constituiria uma infração à Constituição e não seria acatado pelas Forças Armadas e pela Polícia Nacional.
Para Andrés Malamud, pesquisador de América Latina no Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, o que ocorreu foi um “autogolpe falido”, seguido de um julgamento político legítimo. “Entre 2001 e 2016 houve um padrão, em que presidentes eram impopulares mas terminavam o mandato; desde então, há outro; presidentes são impopulares e o Congresso os destitui.”
Malamud vê um desgaste geral do sistema político peruano, principalmente porque ele não funciona bem se não há partidos fortes e, desde o fujimorismo (1990-2000), o quadro se dissolveu em meio a perseguições, prisões, fechamentos do Congresso e sequestros. “Isso torna volátil tanto o voto como a representação. A democracia apenas subsiste, porque não há alternativa mais sedutora.”
Castillo levou ao ápice um clima de convulsão política que derrubou presidentes em série. Desde que o esquerdista Ollanta Humala concluiu seu mandato, em 2016, Pedro Pablo Kuczynski (PPK) renunciou, seu sucessor Martín Vizcarra foi destituído após desgastes com o Congresso, Manuel Merino ficou no cargo por seis dias e Francisco Sagasti cumpriu um governo-tampão.
Na prática, a discussão sobre o movimento do agora ex-presidente configurar ou não um golpe se deu porque ele distorceu a prerrogativa constitucional de dissolver o Congresso. Isso é válido, desde que o Parlamento tenha rejeitado pelo menos dois votos de confiança ao governo.
A gestão Castillo pautou o primeiro no início de novembro, mas a oposição se recusou a votá-lo. Se ele fosse rejeitado, o governo deveria refazer o gabinete, mas poderia convocar uma segunda votação –o que o então premiê Aníbal Torres fez mesmo assim, ignorando a recusa dos opositores e dobrando a aposta.
Ele chegou a dizer que, se a oposição novamente se recusasse a votar, entenderia isso como uma segunda rejeição formal, o que, na prática, poderia ser interpretado como gatilho para a dissolução do Parlamento. A oposição manteve a recusa, e Torres anunciou sua renúncia dias depois.
“Foi um golpe porque nada do que foi anunciado por Castillo era permitido pela Constituição”, diz o cientista político Fernando Tuesta, da PUC do Peru. “Ele tinha baixa legitimidade, que perdeu completamente com a manobra. Passou a usurpar o poder.”
Ele afirma que a nova presidente, Dina Boluarte, terá que agir rápido. “Ela precisa chamar eleições e pedir uma reforma política imediata. O Congresso deve aceitar modificar a Constituição.” Dina a princípio negou a possibilidade de antecipar o pleito, prometendo cumprir seu mandato até 2026. A convocação de uma Constituinte era um dos planos de Castillo que mais enfrentavam oposição no Congresso.
Maritza Paredes, cientista social também da PUC, afirma que há um ambiente de certo alívio –”trabalhadores informais estavam desesperados com a perspectiva de um toque de recolher em um estado de exceção”–, mas vê como difícil uma mudança grande a curto prazo. “É possível que o Congresso dê uma trégua a Dina, que peça que ela não chame novas eleições por enquanto. Ela terá de fazer concessões, mas é tudo muito frágil”, afirma.
Por fim, Malamud faz um alerta sobre o impacto da instabilidade política na economia do dia a dia dos peruanos, apontando que a premissa de que uma coisa se aparta da outra tem se tornado equivocada.
“A macroeconomia funciona, a inflação é baixa, o presidente do Banco Central está no cargo desde 2006 –e esse conjunto gera uma sensação de segurança, ainda que instável, para os políticos. Mas isso está mudando, principalmente depois da pandemia. Com pobreza e informalidade mais altas, a exigência sobre essa volatilidade aumenta.”
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