Com doença que Picon terá na novela, mulher se lesionava com soda cáustica

(UOL/FOLHAPRESS) – Em apenas três meses, a alemã H.G.* foi internada em mais de 20 hospitais. A maioria de suas queixas tinha relação com o abdome. A mulher, de 25 anos, dizia sentir dores agudas na região porque não estava menstruando e relatava um aumento anormal do tônus muscular. Reclamava também de febre, sintomas de uma embolia pulmonar e ideação suicida.

As circunstâncias fizeram com que a paciente fosse submetida a pelo menos seis laparotomias de emergência -técnica invasiva que envolve uma incisão no abdome para acessar órgãos internos-, além de várias laparoscopias, uma abordagem cirúrgica usada para tratar doenças na região abdominal e pélvica. Poucas horas após a conclusão de qualquer procedimento, contudo, ela sempre arranjava um jeito de escapar do hospital em que estivesse internada.

Chegou a sair de um deles imediatamente após uma das operações, com o cateter e os drenos ainda colados em seu corpo, segundo informações de relato de caso publicado na Revista da Associação Médica Brasileira, em 2002.

Um dia, sem avisar ninguém, ela não retornou de um passeio externo que lhe havia sido permitido no Instituto Central de Saúde Mental de Mannheim, na Alemanha. Os profissionais da saúde descobriram que a paciente saiu de lá para procurar outros hospitais na cidade.

Ao entrar em contato com os estabelecimentos por onde ela passou, constataram que, 24 horas após a fuga, a mulher reclamou de sintomas abdominais e foi novamente laparotomizada. Alguns dias mais tarde, o mesmo procedimento cirúrgico foi realizado em um terceiro serviço médico.

Ela foi internada por um curto período em um hospital psiquiátrico logo em seguida, devido a comportamentos suicidas. Por meio de sessões de psicoterapia intensiva, os médicos chegaram à conclusão de que H.G. não sofria de nenhuma doença abdominal, mas, sim, psíquica: ela dizia ter quadros de doenças que exigiam cirurgias de urgência, como a apendicite. Mas era tudo inventado.

A paciente foi diagnosticada com a chamada síndrome de Münchausen, também conhecida como transtorno factício imposto a si mesmo, condição em que a pessoa finge, falsifica ou induz sintomas médicos, psicológicos ou comportamentais só para assumir o papel de doente e receber tratamento hospitalar frequente.

Descrita em 1951 pelo médico inglês Richard Asher e batizada em homenagem ao Barão de Münchausen -um alemão que ganhou fama por suas extensas viagens e narrativas exageradas-, a doença veio à tona nas redes sociais nas últimas semanas porque será enfrentada por Chiara, personagem vivida por Jade Picon em “Travessia” (TV Globo), nos próximos capítulos da novela.

“O que caracteriza esses pacientes são histórias fantasiosas e que, muitas vezes, geram cirurgias de urgência. De maneira geral, eles são movidos por uma necessidade de receber cuidados, mas acabam se submetendo a riscos muito grandes em função das dezenas de intervenções médicas que recebem ao passar por diversos hospitais”, explica Wagner Gattaz, presidente do conselho diretor do Instituto de Psiquiatria do HCFMUSP (Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo), que acompanhou de perto o caso de H.G. na época.

Depois que a paciente foi encaminhada para o hospital psiquiátrico, os autores do relato não tiveram mais informações sobre o seu caso -mas suspeitam que mais intervenções cirúrgicas e procedimentos diagnósticos foram realizados. Eles calcularam que a síndrome fez com que a mulher, além dos riscos aos quais se expôs, causasse um custo de aproximadamente US$ 300 mil (cerca de R$ 1,5 milhão) ao seu seguro-saúde na Alemanha.

SÍNDROME É DIFERENTE DA SIMULAÇÃO OU DA HIPOCONDRIA

Algumas pessoas com condições médicas podem exagerar seus sintomas para obter mais atenção de profissionais da saúde ou familiares. Mas um diagnóstico de transtorno factício imposto a si mesmo só deve ser considerado se houver evidência de que a pessoa está fingindo, falsificando, induzindo ou agravando intencionalmente os sintomas, segundo a Classificação Internacional de Doenças, a CID-11, da OMS (Organização Mundial de Saúde).

Além de se ferir fisicamente ou induzir doença a si mesmo, exemplos de comportamentos de quem sofre com a síndrome incluem manipular exames laboratoriais para indicar falsamente uma anormalidade -adicionando açúcar ou sangue à urina, por exemplo-, manipular o termômetro para sugerir febre ou falsificar registros médicos passados ou atuais para indicar o diagnóstico de alguma patologia.

Quando o hospital descobre que a pessoa está produzindo os sintomas, a tendência é que os pacientes sejam rotulados de mentirosos ou simuladores, ao invés de serem encaminhados para o tratamento psiquiátrico e psicológico -considerados fundamentais para o controle do transtorno.

“Enquanto o simulador sabe que está criando sintomas e seu objetivo é algum tipo de indenização ou um afastamento do trabalho, quem tem a síndrome de Münchausen não está visando nenhuma vantagem externa óbvia. A pessoa quer receber cuidados”, diz Gattaz.

O cenário também é diferente de uma pessoa hipocondríaca, que, ao contrário de quem tem transtorno fictício, não provoca os sintomas com a intenção de ficar doente: nesses casos, o indivíduo, mesmo sem nenhuma evidência médica, acredita ter uma doença.

Para o psiquiatra, pacientes que apresentam as características da síndrome devem ser observados de forma cuidadosa o maior período de tempo possível -se necessário, em terapia intensiva-, e um esforço para esclarecer o diagnóstico deve ser feito antes de se realizar qualquer procedimento invasivo desnecessário.

O encaminhamento para a ala psiquiátrica é o próximo passo. “É preciso fazer o paciente entender que ele será acolhido e que ele está doente, só que a doença dele não é uma doença abdominal, por exemplo, mas uma doença psíquica”, diz o médico.

A condição é considerada incapacitante e de prevalência desconhecida. Enquanto alguns estudos sugerem que o transtorno é raro, outros apontam que, devido às dificuldades de diagnóstico, o problema psiquiátrico pode ser bem mais comum do que se imagina.

OSSOS E TENDÕES A OLHO NU

Quando a funcionária pública Y.L.* chegou ao setor de cirurgia da mão da Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre (RS), ela já havia sido tratada e avaliada por médicos de cinco especialidades, em outros serviços de saúde: reumatologia, cirurgia plástica, infectologia, cirurgia vascular e ortopedia. No dorso de uma de suas mãos, era possível observar uma lesão ulcerada que, segundo ela, havia sido causada por uma picada de aranha.

A mulher, de 39 anos, tinha sido submetida a três cirurgias plásticas previamente. Mas nada parecia ser capaz de cicatrizar a lesão, que evoluiu para uma grande área cruenta com ossos e tendões expostos a olho nu.

Em função do tempo e da evolução da gravidade do ferimento, os médicos do hospital precisaram fazer um procedimento para cobrir a área de exposição óssea e articular. No entanto, quatro semanas depois, uma região de necrose surgiu no dorso de sua mão.

A localização do tecido morto, contudo, chamou a atenção da equipe. “As bordas da lesão ultrapassavam o limite do retalho e tal complicação é de impossível explicação do ponto de vista anatômico e patológico”, escreveram os médicos responsáveis pelo caso, em relato que foi publicado na Revista Brasileira de Ortopedia.

A suspeita era de que a paciente estivesse injetando algum tipo de substância tóxica sob a pele para causar as feridas. Tanto ela quanto seus familiares, no entanto, negavam a hipótese de autoflagelação.

Além de contatar o serviço de psiquiatria e de cirurgia plástica para auxiliar no caso, a equipe decidiu remover o tecido de necrose da lesão e fechar o curativo com gesso, que era trocado a cada duas semanas.

Foi nesse período que eles tiveram ainda mais certeza de que a mulher estava machucando a si própria: como o gesso impedia que qualquer líquido fosse inserido em sua pele, num período de seis semanas a lesão cicatrizou completamente.

“Lesões que não se enquadram nos casos típicos e pacientes que já procuraram vários médicos, foram submetidos a vários exames e tratamentos sem sucesso sempre devem chamar a atenção dos ortopedistas e cirurgiões”, avalia o cirurgião de mão Ricardo Kaempf de Oliveira, um dos profissionais que atendeu a mulher e assina o relato de caso, publicado em 2012.

A paciente, ao contrário do que solicitou a equipe médica, não retornou mais para as revisões depois da cicatrização.

SODA CÁUSTICA PARA SE MACHUCAR

Outro caso da síndrome no Brasil também envolve uma mulher que se queixava de lesões na pele, dessa vez em formato de bolhas, distribuídas em seus braços, coxas e tronco. Em um dos hospitais que R.F.*, de 36 anos, foi, ela recebeu diagnóstico de pênfigo vulgar, doença autoimune e rara que causa bolhas na pele.

Mas o resultado de uma biópsia feita em outro estabelecimento indicou que o problema era outro: dermatite de contato irritativa -reação que ocorre quando a pele entra em contato com uma substância que desencadeia irritação.

O composto químico que havia causado o problema era, segundo o laudo, “inespecífico”. Esse mistério só começou a ser desvendado quando os médicos de um dos hospitais pelos quais a paciente passou perceberam que, além de ter um histórico de atendimentos, ela estava muito inquieta e confusa.

Submetida à avaliação psiquiátrica, a mulher acabou revelando que a autora das lesões, na verdade, tinha sido ela própria. Para se machucar, confessou, usava soda cáustica.

O caso, atendido pelo Hospital Universitário Lauro Wanderley, ligado à UFPB (Universidade Federal da Paraíba), foi descrito em artigo publicado na revista Anais Brasileiros de Dermatologia, publicação oficial da SBD (Sociedade Brasileira de Dermatologia), em 2018. Segundo os profissionais que avaliaram R.F., seu problema não era uma dermatite comum, mas, sim, factícia.

“Na dermatologia, precisa conversar muito com paciente e saber a origem das feridas de pele. Quem tem dermatite factícia geralmente faz as lesões de pele com ácidos ou facas e foca nas partes mais expostas, como braços, pernas e barriga”, diz o dermatologista Mohamed Azzouz, que acompanhou o caso de R.F. na época.

POR QUE AS PESSOAS MACHUCAM A SI PRÓPRIAS?

Segundo a CID/OMS, presume-se que a motivação para o transtorno factício imposto a si mesmo seja psicológica. Buscar atenção, especialmente de profissionais de saúde, como parte do papel de doente, muitas vezes parece ser uma motivação para o comportamento.

Não existe uma única causa ou fator de risco que justifique o transtorno factício. Mas é sabido que algumas pessoas diagnosticadas podem ter, ao mesmo tempo, outras doenças psiquiátricas, principalmente distúrbios de personalidade -embora a novela ainda não tenha revelado se esse é o caso de Chiara, diversas cenas já mostraram a personagem de Jade Picon fazendo uso de remédios psicotrópicos.

Privações na infância, abuso infantil e fatores ambientais estressantes também podem estar associados ao problema. De acordo com a OMS, indivíduos diagnosticados com o transtorno são, em sua maioria, mulheres entre 30 e 40 anos.

SÍNDROME DE MÜNCHHAUSEN POR PROCURAÇÃO

Em outra variação do transtorno, conhecida como síndrome de Münchausen por procuração, não é o paciente que causa danos a si mesmo, mas ao próprio filho.

Um dos casos mais famosos da condição é retratado na série “The Act”, da Star+, e no documentário “Mamãe Morta e Querida”, da HBO Max: por causa de sua mãe, a americana Gypsy Rose Blanchard passou a vida inteira acreditando que tinha uma grave doença.

A mulher induziu a filha a pensar que era incapaz de andar, forçando-a, por exemplo, a usar uma cadeira de rodas. Esse tipo de caso é considerado uma forma de abuso infantil e pode provocar diversas sequelas emocionais nas crianças, além de intervenções médicas desnecessárias e perigosas. Quando descobriu a verdade, Blanchard matou a mãe.

*Como as histórias foram contadas a partir de informações contidas em relatos científicos, as pacientes são anônimas. As siglas foram inventadas pela reportagem.

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