(FOLHAPRESS) – Ellen Santana da Silva, 18, não come verduras e legumes há dois meses por falta de dinheiro. Desempregada e com uma filha de cinco meses, ela precisa trocar a carne bovina por salsicha e linguiça, mas já se viu sem nada para comer.
No começo da pandemia, doações de marmitas e cestas básicas ajudavam a amenizar o quadro de vulnerabilidade social. Com o passar do tempo, porém, as doações minguaram, enquanto a insegurança alimentar aumentou.
“A gente recebia bastante doação, mas agora caiu bastante e as coisas estão mais difíceis. Agora, a gente está se virando do jeito que pode, mas está piorando cada vez mais”, diz ela, que mora com mais cinco pessoas em uma casa de três cômodos em Paraisópolis, favela na zona sul de São Paulo.
A renda de R$ 500 mensais da família por vezes é insuficiente para comprar itens básicos, como o gás de cozinha. Quando isso acontece, a alternativa é cozinhar na casa de uma vizinha.
O cotidiano de Maria Carvalho, 61, também piorou. “As coisas foram ficando mais difíceis, e as doações foram diminuindo. Antes, eu conseguia pegar quatro marmitas. Hoje, são duas”, contabiliza ela, que mora com os dois netos.
Carvalho trabalhava como empregada doméstica, mas perdeu o emprego quando a pandemia começou, em 2020. “Antes tinha menos gente na fila. Agora vem mais gente, só que a comida diminuiu.”
Tanto Ellen quanto Maria são atendidas pelo G10 Favelas, iniciativa que chegou a fazer 10 mil marmitas por dia no auge da crise, número que despencou para 600 depois que as contribuições caíram.
Presidente do G10 Favelas, Gilson Rodrigues, 38, acredita que a queda tenha acontecido porque uma parcela da sociedade passou a encarar a insegurança alimentar como algo normal. Hoje, 33 milhões de brasileiros passam fome, número maior do que o registrado há 30 anos.
“As pessoas se acostumaram com a fome, com o desemprego e com o aumento das filas de marmita. Elas estão conformadas com uma realidade piorada. A gente vê reflexo disso em Paraisópolis, mas isso é retrato do Brasil inteiro.”
Um levantamento da Cufa (Central Única das Favelas) confirmou que a diminuição de fato não é algo isolado. De acordo com a entidade, as doações caíram 80% em 5.000 favelas em relação a 2020.
Para Drika Martim, 37, diretora institucional do projeto Mulheres da Cufa, esse tombo expressivo se deve ao empobrecimento da população.
Ela afirma que a iniciativa já atendeu pessoas que fizeram contribuições no começo da pandemia, mas que, depois, passaram a depender de ajuda para poder sobreviver.
Martim destaca ainda que o aumento da pobreza e a diminuição das colaborações agravam a vulnerabilidade das mulheres. Elas não apenas passam a ter dificuldades para se alimentar, mas também para manter a higiene íntima.
“Existem casos de mulheres que não têm como comprar um absorvente e precisam colocar entre as pernas roupa usada, jornal ou miolo de pão”, afirma.
Além de comida e absorventes, ela diz que são fundamentais roupas para enfrentar as ondas de frio registradas neste ano.
“As baixas temperaturas trazem desespero para essas famílias, que vivem em áreas vulneráveis, o que faz o ambiente ser mais úmido e frio. Elas dependem 100% das doações de roupas usadas”, diz, acrescentando que o clima aumenta o risco de mortes e doenças respiratórios entre pessoas em vulnerabilidade social.
“Existe família que tem oito pessoas, mas a gente consegue atender só com um cobertor. A queda de temperatura aumenta muito as nossas demandas”, diz Martim.
A assistente social acrescenta que, além do aumento da pobreza, as doações caíram porque algumas empresas deixaram de fazer contribuições.
“A doação de empresas sempre foi a mais volumosa. A gente entende que talvez essas empresas achem que não há uma demanda tão grande ou não têm fôlego [financeiro] para contribuir.”
Diretor-executivo da Ação da Cidadania, Rodrigo Afonso, 48, faz coro à avaliação de Martim e afirma que as companhias não mantiveram o volume de colaborações do começo da pandemia. Segundo ele, no ano passado, a doação de pessoas jurídicas representou quase 80% dos recursos da organização.
Com a queda, a Ação da Cidadania arrecadou até julho deste ano R$ 10 milhões. No mesmo período do ano passado, esse valor chegava a cerca de R$ 60 milhões.
“As empresas doam uma vez no ano e acham que é suficiente. Há algumas empresas que fazem doação recorrente, mas a maioria doa uma vez no ano ou a cada dois, três anos e pronto.”
Ele diz que as companhias têm dificuldade em manter doação contínua para ações contra a fome porque consideram que a solução vem de políticas públicas voltadas à saúde, educação e emprego.
“A gente sabe que a solução vem daí. Mas, enquanto ela não chega, as pessoas ficam com fome e morrem”, afirma Afonso.
“A maior dificuldade de quem luta contra a fome é fazer a sociedade entender que, se as pessoas não comerem, elas não vão estudar, não vão procurar emprego e não vão ter saúde. O maior problema do Brasil hoje é a fome. Enquanto você não resolve isso, não resolve nenhum outro problema social.”
A escassez de ajuda tem criado um dilema para algumas organizações. Elas se veem obrigadas a escolher quem precisa mais dos mantimentos por estar em maior vulnerabilidade.
Foi isso que aconteceu no projeto Quebrada Alimentada, iniciativa do restaurante Mocotó. No fim do ano passado, atendia cerca de 400 pessoas, número que caiu para 70 neste ano em razão da queda de doações.
“A gente está tendo que dizer não para muitas pessoas, escolher grupos e diminuir as marmitas. É muito cruel e muito pesado ver isso, porque você sabe que a pessoa está precisando”, afirma a historiadora Adriana Salay, coordenadora da iniciativa.
O projeto é 1 dos 154 que integram a campanha Gente é pra Brilhar, Não pra Morrer de Fome. De acordo com Salay, outros coletivos que fazem parte da campanha também enfrentam queda nas doações.
“A gente está numa crise profunda de fome, mas as doações estão na contramão”, conta ela. “Enquanto sociedade, a gente falhou por ter mais da metade da população em insegurança alimentar. Isso não é um problema de uma família, mas sim um problema de todos nós.”
Outra iniciativa que viu as doações encolherem no último ano foi a Gastromotiva, organização fundada em 2006 pelo chef e empreendedor social David Hertz.
De acordo com Clarisse Ivo, gerente de captação de recursos da ONG, houve uma queda de 60% nas doações em relação ao ano passado, o que motivou o fechamento de 50 cozinhas em quatro estados. “Isso representa 750 mil refeições que deixaram de ser distribuídas por conta desse fechamento.”
Apesar disso, ela ainda considera que o brasileiro seja solidário. “Quando você prova o que está fazendo e mostra os resultados, as pessoas têm muito prazer em fazer doação e em ser voluntário. É um trabalho de formiguinha: a gente começa a falar do projeto, a pessoa se encanta e começa a doar”, conclui.
Notícias ao Minuto Brasil – Brasil