LISBOA, PORTUGAL (FOLHAPRESS) – Um artigo que indicava redução de 91% em hospitalizações por Covid-19 em homens que usaram proxalutamida acaba de ser retratado -ou seja, despublicado- pela revista científica Frontiers in Medicine. Segundo o periódico, os resultados apresentados não foram “adequadamente apoiados pela metodologia do estudo”.
Antes da decisão final, a revista já havia divulgado uma nota pública que alertava para potenciais problemas graves do trabalho, conduzido em dois hospitais de Brasília. Um outro artigo do mesmo grupo, dessa vez no British Medical Journal, recebeu o selo de “expressão de preocupação” e passa por um processo de revisão.
Logo após a publicação do trabalho na Frontiers in Medicine, em julho de 2021, cientistas do Brasil e do exterior passaram a criticar abertamente vários pontos da pesquisa, desde a confiabilidade dos dados até aspectos éticos do experimento.
Diante dos questionamentos da comunidade científica, o periódico contratou uma investigação independente. O parecer que analisou o estudo arrasou a metodologia, sobretudo a randomização dos pacientes.
Segundo o desenho metodológico, o ensaio era do tipo duplo-cego e randomizado: quando os participantes são aleatoriamente divididos, sem que os voluntários ou os pesquisadores saibam quem usou placebo ou medicamento. De acordo com o parecer, porém, não foi isso o que aconteceu.
Com base nas informações sobre a ordem de alocação dos voluntários do estudo, o responsável pelo parecer diz ter submetido os dados a uma análise de execução estatística, o consagrado teste Wald-Wolfowitz, um procedimento que analisa a ocorrência de eventos semelhantes e indica se eles foram gerados aleatoriamente.
Segundo o parecer, a probabilidade de ter sequências em que pessoas consecutivas são alocadas ao mesmo grupo, como aconteceu no estudo da proxalutamida, é muito menor do que a chance de alguém ser atingido por um raio na cabeça durante um ano.
O parecerista -que não teve o nome revelado pelos editores da revista científica- afirma que as justificativas apresentadas pelos autores são fracas. “Em resumo, os resultados mostram evidências contundentes de que o processo de alocação para tratamento e controle não foi aleatório. Portanto, as conclusões tiradas do estudo não podem ser defendidas”, traz o trecho do parecer dele.
O conteúdo do parecer e de toda a correspondência com os editores da Frontiers in Medicine foi divulgado pelos próprios autores do estudo, que não concordaram com a retratação e contestam todas as críticas.
Coordenador do experimento, o médico Flávio Cadegiani, doutor em endocrinologia, questiona a lisura do processo de revisão e diz que os autores suspeitam de que a pessoa responsável pelo parecer tenha interesses pessoais na retratação do artigo.
“Fomos completamente ignorados, a nosso ver, porque não há respostas plausíveis. Oferecemos múltiplas chances de respostas. Além disso, ela [a crítica] foi completamente anônima, com absolutamente nenhuma declaração feita em primeira pessoa. Ou seja, sempre as decisões eram baseadas em opiniões de terceiros, estes nunca revelados”, afirmou, em resposta por email à reportagem.
Segundo Cadegiani, a revista ignorou “análises independentes adicionais” que mostrariam vícios de análise no laudo apresentado.
Vários cientistas brasileiros, no entanto, expuseram publicamente que consideravam a “despublicação” do artigo adequada.
“A retratação de um artigo acontece, na ciência, quando o processo de revisão por pares de alguma forma falhou, e começam a aparecer evidências de erros”, explica Leandro Tessler, professor do Instituto de Física da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas), que já fez parte de comissões para investigar trabalhos com problemas.
De acordo com Tessler, quando uma revista científica sinaliza um estudo como potencialmente problemático e nomeia especialistas para investigá-lo, este trabalho é muito mais minucioso do que a revisão normal dos artigos.
“O que não faz sentido é são autores do estudo agirem como se houvesse uma espécie complô mundial contra um trabalho”, completa.
Doutora em pneumologia, a médica intensivista Ana Carolina Peçanha tem no currículo vários treinamentos de elaboração e análise de ensaios clínicos. “A retratação do trabalho se deu por questões metodológicas, que eram realmente muito fracas. A decisão não precisou nem entrar na parte ética, que era muito pior”, avalia ela.
A crítica sobre os aspectos éticos faz referência às acusações de má conduta em ensaios com a proxalutamida em hospitais de várias cidades do Brasil. A droga chegou a ser apelidada de “a nova cloroquina” por ser defendida pelo presidente Jair Bolsonaro e seus apoiadores.
A condução disseminada pelo território nacional dos testes foi declarada irregular pela Conep (Comissão Nacional de Ética em Pesquisa), instância máxima de avaliação ética em protocolos de pesquisa envolvendo seres humanos no país.
A entidade afirma que o grupo desrespeitou a autorização inicial, que teria sido fornecida a uma única instituição de Brasília, e realizou experimentos com a droga em outros pontos do país. A entidade também faz referências a outras questões metodológicas e éticas.
A Conep denunciou o caso à Procuradoria-Geral da República, que agora investiga o estudo em Manaus, que registrou 200 mortes entre os voluntários.
As denúncias fizeram com que a diretoria colegiada da Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) decidisse por unanimidade, em setembro de 2021, suspender a importação e o uso da proxalutamida em pesquisas científicas no Brasil.
O assunto também foi abordado na CPI da Covid, que pediu, em seu relatório final, o indiciamento do médico Flávio Cadegiani.
Sem aprovação para comercialização no Brasil ou em qualquer outro país do mundo, a proxalutamida é uma droga experimental antiandrogênica -ou seja, que bloqueia hormônios masculinos, como a testosterona- e era testada contra tumores de mama e de próstata.
No começo da pandemia, diante da hipótese de que homens estariam mais sujeitos aos efeitos graves do novo coronavírus, algumas pesquisas passaram a apostar nos bloqueadores de hormônio masculino como tratamento.
Segundo a médica intensivista Ana Carolina Peçanha, conforme o conhecimento do sobre o vírus foi aumentando, o uso de inibidores de hormônios masculinos contra a Covid-19 foi se provando ineficaz.
“Eu trabalho na linha de frente, cuidando dos pacientes com Covid-19. Eu seria a primeira a querer um tratamento milagroso que impedisse as pessoas de morrerem. Mas é absolutamente irresponsável a maneira como essas drogas antiandrogênicas foram promovidas”, afirma a médica, que, com o agravamento da pandemia em 2021, interrompeu a licença-maternidade um mês antes do prazo para ajudar a reforçar a equipe do hospital onde atua.
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