Apego de Putin a datas lança sombra sobre Dia da Vitória na Rússia

IGOR GIELOW
SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Durante anos, o apego de Vladimir Putin a datas associadas ao calendário patriótico que promove na Rússia foi visto como uma excentricidade coerente com seu discurso político. No Dia da Vitória de 2022, a ser celebrado nesta segunda (9), tal percepção deu lugar a uma apreensão dentro e fora do país.

O motivo, claro, é a Guerra da Ucrânia. A própria invasão do país vizinho, em 24 de fevereiro, ocorreu na madrugada seguinte a um outro feriado militar, o Dia do Defensor da Pátria.

Naquela noite, o céu de Moscou recebia visitantes à noite com o vermelho de fogos de artifício que seriam um prenúncio do que se veria de forma trágica nas cidades ucranianas.

O Dia da Vitória, contudo, é ainda mais especial. A data celebrará, neste ano, os 77 anos da vitória dos Aliados contra a Alemanha nazista. A rendição fora assinada pelo general Alfred Jodl no dia 8, mas já passava da meia-noite na União Soviética. O país do qual a Rússia é a herdeira legal foi o maior contribuinte em sangue do conflito: 40% dos cerca de 70 milhões de mortos eram soviéticos, e quase 70% das famílias russas perderam algum parente no que lá é chamado de Grande Guerra Patriótica.

Putin, que assumiu como premiê em agosto de 1999 e nunca mais saiu do poder, sendo presidente por quatro mandatos (2000-2004, 2004-2008, 2012-2018 e 2018 até 2024) e primeiro-ministro todo-poderoso de 2008 a 2012, reconstruiu a imagem nacional russa calcada no exemplo histórico.

Assim, se criticava o comunismo, transformou os feitos soviéticos na guerra em peças intocáveis: há leis criminalizando quem faça o que se considere revisionismo histórico. Datas nacionais ganharam vulto semelhante ao dos tempos soviéticos, com desfiles crescentemente grandiosos no 9 de maio.

Por isso, foi tomada como inevitável a ideia de que Putin fará algum anúncio bombástico neste desfile.

O que se sabe até aqui, oficialmente, é que haverá ênfase especial no recado ao Ocidente, com a apresentação de armas que seriam associadas a uma Terceira Guerra: os usuais mísseis e bombardeiros com capacidade nuclear e também o avião no qual Putin embarcará se um conflito atômico começar. Já especulações outras até aqui foram descartadas peremptoriamente pelo Kremlin, o que quer dizer pouco dado o histórico recente de negativas da invasão da Ucrânia.

Na comunidade de analistas militares russos, próxima do establishment das Forças Armadas que estão sofrendo duramente na Ucrânia, circula a ideia de que o líder russo poderá determinar uma mobilização nacional e assumir que está em guerra, não numa “operação militar especial”, como se diz no Kremlin.

Tal versão se ancora no fracasso até aqui em trazer um resultado satisfatório para casa. A fase inicial da invasão, atabalhoada com focos difusos e pouca força terrestre empregada, é motivo de vergonha entre esses observadores. A atual, concentrada no Donbass (leste) e no sul do país, parece mais coerente, mas de acordo com analistas padece do mesmo problema de falta de recursos humanos.

A dificuldade seria resolvida legalmente com a convocação da tropa conscrita e talvez de reservistas, o que a operação especial não prevê. Por outro lado, alguns dos analistas consideram que Putin não quer a escalada para não comprometer ainda mais a imagem do país em caso de fracasso.

Uma variante dessa versão dizia que Putin tentaria conquistar os objetivos no Donbass a tempo de cantar vitória. Militarmente, não é possível, dado que os combates estão em pleno curso e não há, na avaliação de institutos ocidentais e de analistas russos, nada parecido com uma derrota ucraniana no leste à mão.

Mas não é impossível criar uma pantomima política, na qual Putin anuncie algo como uma “libertação”, aspas compulsórias, dos povos do Donbass. Ele já reconheceu como independentes as duas repúblicas autoproclamadas em 2014 e que viviam em guerra civil com Kiev desde então, e a proteção delas “a pedido”, novamente com aspas, foi um dos motivos declarados da invasão.

Tal manobra poderia ser engordada com um anúncio de anexação desses territórios, talvez com inclusão de uma terceira república, a de Kherson, a região ucraniana entre o Donbass e a Crimeia anexada em 2014.

Os russos controlam toda essa região hoje, com exceção do bolsão de resistência da usina de Azovstal, nas ruínas de Mariupol. É a chamada Nova Rússia, fetiche dos ultranacionalistas do país. Sinais de uma absorção abundam: há relatos de um plebiscito sendo preparado em Kherson, a capital homônima, e nesta semana a sinalização das estradas da região ganhou placas em russo no lugar das em ucraniano e inglês.

Por fim, há uma hipótese mais delirante, de que Putin declararia a Rússia em guerra com a Otan, a aliança militar do Ocidente. Argumento é fácil de achar, dada a belicosidade com que os Estados Unidos tratam a questão, tanto via sanções econômicas como em apoio militar crescente a Kiev.

Racionalmente, isso não deve ocorrer, dado que seria uma sentença de morte mútua: um combate convencional seria impagável para Moscou, e uma troca nuclear significaria o fim do país.

Como Putin pode ter arroubos, como a concretização do ataque à Ucrânia, a pulga segue atrás da orelha ocidental. Mas um cenário de uso de armas nucleares, seja contra a Ucrânia, seja numa Terceira Guerra, passa mais pela ideia de que a derrota russa é inevitável –e isso não está na mesa neste momento.

Como o presidente russo demonstrou em fevereiro, o fato é que quase ninguém sabe o que passa em sua cabeça. Nada impede que o desfile seja meramente uma celebração duvidosa do poder militar russo e dos soldados caídos na Ucrânia, com a ameaça nuclear velada ao Ocidente. Assim, até o último tanque deixar a praça Vermelha na segunda-feira, o mundo deverá prender a respiração mais uma vez.

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