DAIGO OLIVA
DUBAI, EMIRADOS ÁRABES (FOLHAPRESS) – A visão estratégica de potências do Oriente Médio como Arábia Saudita e Emirados Árabes Unidos há tempos se define pelo esforço em deixar para trás a dependência econômica do petróleo. Com a Guerra da Ucrânia, porém, esse caminho ganhou uma pedra.
As sanções do Ocidente que miram o setor na Rússia (responsável por 11% da produção mundial) podem abrir uma janela a outros países produtores, e analistas enxergam Riad e Abu Dhabi como os principais beneficiários em potencial -ainda que sauditas e emiradenses busquem diversificar sua economia e mantenham elos diplomáticos com o país de Vladimir Putin e desavenças com os Estados Unidos.
Washington já anunciou, no começo de abril, a proibição de importações de petróleo, gás e carvão de Moscou, mas o movimento ainda não foi concretizado pela União Europeia, cujos membros, Alemanha e Holanda à frente, são o destino de quase metade da produção russa, segundo a Administração de Informações de Energia (EUA). Obviamente, os efeitos na população de uma eventual interrupção da importação do petróleo moscovita geram hesitação para punir a Rússia.
Assim, nas últimas semanas, tanto EUA como nações europeias passaram a buscar alternativas para evitar uma escalada de preços e substituir a torneira que se fecha. Venezuela e Irã, rivais dos americanos, tornaram-se opções, e contatos diplomáticos foram feitos para destravar as sanções contra a ditadura de Nicolás Maduro e, no caso do país persa, as negociações em torno da volta do acordo nuclear de 2015.
Ao menos por enquanto, essas possibilidades não tiveram êxito, e o caminho leva ao Oriente Médio, já que Arábia Saudita e Emirados Árabes Unidos, detentores de 12% e 4% do mercado mundial de petróleo, são vistos como os únicos com condições de aumentar a produção com relativa facilidade.
A tentativa inicial de contato de Joe Biden com os líderes de ambos os países, no entanto, fracassou, e as ligações do democrata, segundo relato do Wall Street Journal, nem ao menos foram atendidas.
Os motivos são vários: o diálogo americano para reviver o pacto nuclear com o Irã -inimigo de sauditas e emiradenses-, a falta de apoio de Washington na guerra por procuração empreendida no Iêmen -de novo contra o país persa- e o caso do assassinato de Jamal Khashoggi.
Em fevereiro de 2021, pouco após Biden assumir a Presidência, a CIA divulgou relatório segundo o qual o príncipe saudita Mohammed Bin Salman aprovou o plano para matar o jornalista crítico do regime.
Durante a campanha eleitoral, o democrata chegou a dizer que a intenção era transformar a família real em pária, declaração bem diferente da maneira como se comportou já no cargo. Em março do ano passado, defendeu a decisão de não punir MbS (como o príncipe é conhecido) alegando que agir contra a realeza saudita teria implicações negativas para os EUA. Mas o estrago já estava feito.
Outras razões, que incluem demandas dos Emirados Árabes, são a presença da Rússia na Opec Plus, versão ampliada da Organização dos Países Exportadores de Petróleo, além da já mencionada necessidade de diversificar suas economias, pois o combustível fóssil tem décadas contadas para acabar.
Em 2019, as atividades relacionadas ao petróleo representaram 24,2% e 16,1% do PIB de Arábia Saudita e Emirados Árabes, respectivamente, de acordo com o último dado disponível no Banco Mundial. As cifras estão bem abaixo dos picos do final da década de 1970 (87,3% e 60%), mas ainda são altos. Nos EUA, maiores produtores de petróleo do mundo, esse índice é de 0,3%, e no Brasil, de 2%.
Ainda que não tenham atendido o telefonema de Biden, os Emirados posteriormente fizeram um lobby para que membros da Opec aumentem a produção, num movimento sem coordenação com os sauditas. No World Government Summit, realizado em Dubai, no final de março, o ministro de Energia dos EAU, Suhail Al Mazroui, ressaltou a preocupação com o tema, com críticas não nomeadas a Washington.
“Devido a questões geopolíticas e porque a segurança energética é uma prioridade agora, alguns países estão se esquecendo dos custos”, disse. “Mas nós e os nossos parceiros na Opec+ estamos tentando manter a ordem, trazendo o quanto pudermos de recursos para o mercado e pagando o que é razoável para nós. Para isso, além de investimento, precisamos desassociar política dos custos de energia.”
Mesmo antes da guerra, o tema da energia já era uma questão, uma vez que a Covid atingiu com força as exportações de petróleo sauditas, contribuindo para uma queda superior a 6% do PIB do país em 2020. Além de crises monumentais não previstas, outro fator a acelerar a ação de governos para evitar a dependência do petróleo é a pressão pela busca de outras fontes de energia devido à crise climática.
Jorge Camargo, conselheiro do Instituto Brasileiro do Petróleo e Gás e diretor da área internacional da Petrobras entre 2000 e 2003, avalia que a Guerra da Ucrânia não necessariamente vai reduzir o ritmo de exploração de novas opções de energia e aposta que a Arábia Saudita seguirá investindo em energia solar.
Em um contexto mais amplo, Camargo observa que o conflito fará com que, a curto prazo, a Europa priorize a segurança energética em vez da ambição climática, usando todos os recursos possíveis para cobrir a demanda de suas populações. A médio e longo prazos, no entanto, a ordem terá de ser invertida, afirma ele, e os governos europeus precisarão “acelerar as iniciativas para substituir o uso de petróleo e carvão”, justamente para evitar sinucas de bico como a que ocorre agora em razão da guerra.
Essa gama ampla de fatores faz com que Arábia Saudita e Emirados Árabes Unidos busquem alargar os horizontes econômicos. Em 2016, os sauditas anunciaram o programa Vision 2030, que visa a aumentar a participação da iniciativa privada no país e a atrair investimento estrangeiro por meio do desenvolvimento de megaprojetos -caso da cidade futurística batizada de Neom, com 25,5 mil quilômetros quadrados, que busca atrair turismo e formar um hub de tecnologia no país. Vendido como um misto de modelo urbanístico e espaço para inovação, o projeto está previsto para estrear por volta de 2025.
Os anúncios são acompanhados de uma megaofensiva de propaganda, para mostrar que o país, que impõe graves limitações aos direitos humanos e à liberdade de expressão, é moderno e atrativo para o exterior. Na Expo 2020, sediada em Dubai, o estande saudita era um dos mais vistosos, com um espelho gigante na entrada e projeções que exibiam mulheres em piscinas acompanhando uma corrida de carros.
Faz parte desse movimento a autorização, em 2017, para que mulheres possam dirigir e a liberação de cinemas e shows, mudanças que, se por um lado atenuam as críticas, não encobrem outros fatos, como a execução recente de 81 pessoas num único dia por acusações de terrorismo -algo que não impediu que o premiê britânico, Boris Johnson, visitasse o país no dia seguinte para pedir mais produção de petróleo.
Da mesma forma, os EAU apostam no combo de turismo, energias renováveis, produtos manufaturados e tecnologia -o país lançou em 2020 uma sonda espacial para chegar a Marte- para evitar a dependência do petróleo. Se a Arábia Saudita criou a iniciativa Vision 2030 há seis anos, o emirado de Abu Dhabi, um dos sete que formam a nação, já havia divulgado o seu plano em 2008, com objetivos bem similares.
Os esforços para impulsionar o turismo no país muitas vezes esbarram nas mesmas críticas à falta de liberdade de expressão, ainda que em graus bem diferentes dos vistos na Arábia Saudita. Questionado, Mohammed Jalal Al Rayssi, diretor da WAM (Agência de Notícias dos Emirados, na sigla em inglês), é rápido na resposta: “Se você vier aqui, você verá que há liberdade de imprensa, poderemos discutir cada detalhe sobre direitos humanos, mulheres e crianças estão vivendo suas vidas normalmente e, às vezes, eles têm mais oportunidades do que em outros países, incluindo os do Ocidente”.
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