(FOLHAPRESS) – Instagram, Twitter, WhatsApp, YouTube. Cada uma dessas plataformas digitais tem uma contribuição a dar para o edema negacionista em torno das vacinas. E o Telegram possui um lugar especial nesse debate: a ferramenta para troca de mensagens que por pouco não foi bloqueada no Brasil é um espaço estratégico para produzir desinformação que será compartilhada por celular e em outras redes sociais.
Uma espécie, portanto, de polo organizador para movimentos antivacina. É o que aponta uma pesquisa da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais) que monitorou, por seis meses de 2021, o debate digital sobre imunizantes no Brasil. O período, de junho a novembro, coincidiu com a aceleração da campanha de vacinação contra a Covid-19 no país.
O Telegram entrou na berlinda após a decisão do ministro do STF (Supremo Tribunal Federal) Alexandre de Moraes de obstruir o aplicativo no país. A ordem não precisou ser posta em prática porque, após tentativas fracassadas de interlocução, o Telegram enfim respondeu à Justiça brasileira.
O estudo mostra que a ferramenta fundada em 2013 por dois irmãos russos serve como zona de regeneração para páginas derrubadas em outros aplicativos.
Se, por exemplo, o Instagram desativa um perfil que posta fake news sobre imunizantes, o Telegram entra em ação para rearticular o mais rápido possível a conta excluída.
“O canal no Telegram serve para reunir pessoas e iniciar novas páginas se, em algum momento, o Instagram bloquear as páginas que estão sendo utilizadas, incluindo ‘backups’ e perfis ‘espelho’, sem postagens, mas prontos para começar a funcionar”, diz o trabalho coordenado pelo Núcleo de Educação em Saúde Coletiva da Faculdade de Medicina, em parceria com o Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde.
Uma amostra do que estamos falando: a @reacoesvacinacovid19, conta do Instagram que alardeava supostas verdades sobre vacinas que estariam sendo escondidas das pessoas, havia sido banida pela plataforma em abril de 2021. Já havia a @reacoesvacinacovid19_v3 como página reserva para recepcionar os seguidores deixados ao léu. Pois o Telegram foi fundamental para ativar essa triagem.
Durante a pandemia, circulou toda sorte de fake news sobre o tema: doses capazes de alterar o DNA de quem as recebesse, ou mesmo relacionadas à transmissão do HIV –falsidade que chegou a ser difundida pelo presidente Jair Bolsonaro.
O acompanhamento acadêmico seguiu 15 grupos do Telegram com proposta antivax. Detectou ali uma plataforma pródiga em relatos emotivos, “que trabalham situações de sofrimento de familiares supostamente mortos por reações adversas de vacinas”.
Componentes religiosos são outro ponto forte do discurso negacionista. São mensagens como esta que rodou recentemente a plataforma: “Vacina é a principal marca da besta, na testa. A marca na mão, seja passaporte sanitário, chip, tatuagem quântica ou qualquer outra imundície que aparecer, é secundária”.
“Essa ideia de que a vacina é um chip ou marca da besta já apareceu várias vezes, assim como reclamações de que muitos pastores e padres estão ajudando a vacinação”, diz o analista de dados João Guilherme Santos, pesquisador do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia em Democracia Digital e um dos responsáveis pelo monitoramento.
Outra função importante do aplicativo: orquestrar ações coordenadas contra parlamentares que defendam medidas que desagradem o movimento antivacina.
Aconteceu com a senadora Nilda Gondim (MDB-PB), que compartilhou em suas redes um projeto de lei que autoriza o empregador a demitir por justa causa funcionários que recusem a picada no braço. “Ela desativou os comentários no Insta[gram]. Vamos para o Face[book]”, orientava uma postagem.
Santos prefere não hierarquizar o papel do Telegram na cadeia de desinformação. Melhor pensar num sistema integrado, diz. Exemplo: em vez de tentar calcular se o YouTube é mais danoso do que o Telegram, ou vice-versa, “a gente entende como uma combinação”.
É aquela história da união que faz a força. Um compilado negacionista no YouTube, com 1 milhão de visualizações, é poderoso para popularizar uma ideia. Até que é derrubado, sai do ar, e o material se perde, afirma o pesquisador. “Mas se você tiver 10 mil celulares encaminhando o vídeo, você tem 10 mil réplicas daquele conteúdo. Virtualmente é impossível apagar aquilo. Em termos de sobrevida [do teor], 10 mil podem ser mais valiosos do que 1 milhão.”
A pesquisa da UFMG mostra como cada ferramenta tem algo a oferecer para a teia negacionista. O Twitter, com seu senso de urgência, ajuda nos virais ligeiros. Os recursos audiovisuais do YouTube criam uma narrativa mais ampla. O Instagram é craque em passar recados com imagens fáceis de assimilar. Já o Telegram entra com a “fundamentação comunitária propícia à mobilização coletiva”.
“Eu diria que não é possível apontar alguma [rede] com mais potencial de dano”, afirma Ricardo Fabrino Mendonça, coordenador do Grupo de Pesquisa em Democracia e Justiça da UFMG, que cedeu pesquisadores para o projeto de monitoramento.
“Cada uma delas tem seus riscos e seus benefícios. Mas plataformas como Whatsapp e Telegram têm essa capacidade de disseminação capilarizada nem sempre totalmente pública e visível, que pode beneficiar atores que querem disseminar conteúdos perigosos. Esse jogo de luz e sombra em que circulam conteúdos diversos traz novos desafios à democracia.”
Outro ponto ainda a ser dimensionado é o estrago que esses grupos alérgicos à ideia da imunização podem provocar a longo prazo na cobertura vacinal.
O desenho da pesquisa, inclusive, é anterior à pandemia. A ideia era investigar por que os brasileiros estão se vacinando menos na última década, fenômeno que contempla vários fatores sociais.
O ano de 2021 registrou uma queda histórica na imunização de crianças e adolescentes, o pior desempenho em mais de 30 anos. Muito deve ser levado em conta aqui: recentes cortes em propagandas federais sobre o calendário infantil de vacinas e até mesmo uma população que já não lembra danos causados por doenças erradicadas justamente por uma eficiente rede vacinal no Brasil.
O que os pesquisadores querem observar, agora, é se a rede antivacina que surgiu durante a crise da Covid-19 pode se estender a outros imunizantes, à moda do que se vê nos EUA e na Europa.
Santos lembra que há todo um espectro para quem hesita em se vacinar, que vai dos apáticos (não negam a gravidade da doença, mas por algum motivo não buscam sua dose) aos conspiracionistas (chegam a acreditar em controle populacional por meio de chips líquidos injetados nos cidadãos).
“Nem todo mundo desconfiado das vacinas é adepto a teorias da conspiração. E quando a gente trata tudo como se fosse a mesma coisa, entregamos essas pessoas para os negacionistas mais ferrenhos”, afirma o analista de dados.
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