(FOLHAPRESS) – Os professores da USP Kostiantyn Iusenko, 39, e Nataliia Goloshchapova, 36, esperavam com ansiedade a viagem de férias à Ucrânia após dois anos de pandemia, período em que pouco saíram de casa na zona oeste de São Paulo. Os familiares, a comida e os lugares que marcaram suas vidas antes de se mudarem para o Brasil, há nove anos, estavam presentes na memória. O reencontro do casal com o passado traria a sensação de aconchego de que tanto precisavam.
Assim foi no início deste ano. Tudo corria bem em meio ao inverno ucraniano e o retorno ao Brasil já estava programado para o fim de janeiro. Mas ambos tiveram Covid-19 e a volta foi adiada para 28 de fevereiro. Quatro dias antes de os professores de Matemática embarcarem para São Paulo, porém, tropas russas invadiram o país e deram início à guerra. Já era tarde demais para cruzar fronteiras e voltar para casa.
Se o contratempo provocado pelo coronavírus manteve Iusenko e Goloshchapova presos por mais um mês em sua Ucrânia natal, a guerra contra os russos foi ainda mais impeditiva. Segundo a lei marcial que vigora no país do leste europeu, todo homem ucraniano, entre 18 e 60 anos, deve defender a pátria. A professora decidiu permanecer no país com o marido.
Segundo Iusenko, o processo de naturalização do casal começou em 2021 e está travado em meio a trâmites do governo brasileiro, que exigiriam inclusive uma entrevista pessoal, o que é impossível no momento. Se tivessem o passaporte do Brasil, os dois poderiam voltar ao país. “Pediria um pouco de bom senso em relação às questões burocráticas”, afirma.
Os docentes da USP contam que, apesar dos alertas feitos pelos Estados Unidos, pouca gente pensava que, de fato, haveria uma ofensiva maior por parte dos russos. “O que a gente acreditava é que poderia acontecer algo localizado, no Donbass, na parte leste”, diz o professor.
Ao verem um vídeo de Vladimir Putin desconsiderando a história ucraniana e a própria existência do país como algo independente da Rússia, dias antes da invasão, os professores da USP passaram a temer pelo pior. “A gente começou a pensar que seria algo muito complicado”, conta.
A tensão cresceu ainda mais com a confirmação de que, de fato, se tratava de uma guerra. “A gente ficou os nove primeiros dias em Kiev. Havia muitas explosões, não exatamente no nosso bairro, mas relativamente perto. Várias vezes, eu vi mísseis em direção ao centro da cidade. Um dia, a defesa aérea pegou um míssil relativamente perto do nosso condomínio”, afirma Iusenko.
O professor se engajou na defesa territorial dos prédios, com um grupo formado por voluntários. “A gente organizou o abrigo, dois postos de controle e até preparamos montes de coquetéis Molotov”, conta.
Goloshchapova viu pânico nas ruas, pessoas desesperadas tentando comprar comida e uma sensação de insegurança em meios aos sons da guerra. “Dormimos em um corredor que achávamos seguro, por ter paredes grandes. A situação estava piorando”, diz.
Foi então que, assim como 80% dos moradores do bairro onde estavam, eles decidiram deixar Kiev. Uma professora ofereceu carona para o oeste, em direção a Ternopil, onde mora a irmã de Goloshchapova. Foi uma viagem por caminhos alternativos para evitar as batalhas, mas ambos chegaram bem ao destino.
Por enquanto, a situação em Ternopil é menos assustadora do que na capital ucraniana. Mas não totalmente livre de medo e apreensão. Na madrugada de segunda-feira, por exemplo, a professora da USP foi acordada ao menos cinco vezes por alarmes de que corriam o risco de sofrer um ataque aéreo.
“Os grandes temores agora são de que os russos vão usar arma nuclear. Acho que a possibilidade de que isso ocorra não é nula. Ou provocar explosão numa das usinas nucleares, exterminar a população civil das cidades capturadas, o que na verdade já está acontecendo em Mariupol. Eles estão bombardeando os abrigos e causando a morte de centenas de pessoas por ferimentos, fome e sede”, diz Goloshchapova.
O casal vê um cenário bem complexo que levou à guerra, e cita a quebra da União Soviética, o conflito atual entre Rússia e OTAN (Organização do Tratado do Atlântico Norte), a luta histórica de independência da Ucrânia em relação à Rússia, sinais de fascismo na Rússia moderna. Também apontam o que acreditam ser a fraqueza dos países ocidentais nos conflitos recentes entre outros. “Parece que o Putin realmente tem ideia obsessiva de colecionar ‘terras russas’ e entrar para a história. A Ucrânia é um território chave nesse quebra-cabeça”, afirma Goloshchapova.
“Até a guerra começar, uma grande parte das pessoas [ucranianas] gostava da Rússia e queria fazer parte desse conjunto econômico e cultural russo. Não poderiam acreditar que fosse acontecer esse inferno, que os russos iriam nos matar de verdade. Em alguns aspectos, piores que fascistas”, afirma a professora. “Eles [russos] já quase não têm apoiadores aqui na Ucrânia”, completa.
Apesar do futuro ainda incerto, ambos já sonham com o que pretendem fazer no retorno ao Brasil. As viagens para Campos do Jordão, os passeios pelos parques e a vida cotidiana do passado vão ganhar a companhia dos amigos.
“A primeira coisa será descansar um ou dois dias. E quando estiver perto dos amigos, vou querer abraçá-los. A gente está recebendo muito apoio de nossos colegas, professores, estudantes”, afirma Iusenko, que também pretende ajudar os refugiados ucranianos da melhor forma. Mesmo agora, já têm contado com a ajuda de colegas brasileiros para auxiliar quem se abrigou em Ternopil.
NATURALIZAÇÃO
A Reitoria da USP afirma que esteve em contato com o Ministério da Justiça e Segurança Pública, a Polícia Federal e membros da Embaixada Brasileira na Ucrânia, que foram muito receptivos à demanda da Universidade. “Entretanto, o que impede o retorno do professor ao Brasil é a Lei Marcial da Ucrânia, que proíbe homens dos 18 aos 60 anos, naturalizados ou não, de deixarem o país”, afirmou, em nota.
O Ministério da Justiça e Segurança Pública afirmou que não se manifesta sobre casos de naturalização em andamento e não divulga informações sobre situação migratória de imigrantes, as quais se constituem de dados pessoais, de caráter restrito, de acordo com a Lei 13.445, de 2017.
Segundo o ministério, em relação à entrada de imigrantes em território nacional, a autorização não depende de naturalização, e sim da titularidade de visto válido, de autorização de residência no país ou que o interessado seja de nacionalidade beneficiária de tratado ou comunicação diplomática que enseja a dispensa de visto, de acordo com o art. 164 do Decreto 9.199, de 2017.
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