MOSCOU, RÚSSIA (FOLHAPRESS) – O ataque russo à Ucrânia, iniciado na madrugada desta quinta (24) no horário local, alia táticas militares nunca antes usadas pela Rússia a um grau considerável de risco corrido pelo presidente Vladimir Putin.
Depois da Segunda Guerra Mundial, quando o poderio do Exército Vermelho da União Soviética repeliu a brutal invasão nazista de 1941 de volta até Berlim, tomada quatro anos depois, as forças russas nunca haviam se envolvido em uma ação tão grande.
Houve repressões no bloco soviético contra Hungria (1956) e Tchecoslováquia (1968), escaramuças com os chineses nos anos 1960, a desastrosa ocupação do Afeganistão (1979-89), as duas guerras locais na Tchetchênia (1994-6 e 1999-2000), e as ações pontuais na Geórgia (2008) e na Ucrânia (2014), e a intervenção na guerra civil síria (2015 em diante).
Nada como agora. “A ação está sendo realizada de acordo com uma técnica nova, aparentemente parcialmente testada na Síria. O ataque com mísseis, inclusive de cruzeiro, foi poderoso e inédito”, afirma Ruslan Pukhov.
Ele é o diretor do Centro de Análise de Estratégias e Tecnologias de Moscou, e é reputado com um dos mais bem informados analistas militares do país. “A eficácia não está clara ainda, mas possibilitou à Rússia colocar rapidamente em ação helicópteros e aviões”, disse.
A tática é velha conhecida do Ocidente, tendo tido sua estreia midiática na primeira Guerra do Golfo, em 1991. A diferença é que agora Moscou também tem seus mísseis de cruzeiro, principalmente o Kalibr, disparados por navios e submarinos. O míssil ar-terra Kripton, visando instalações de radar, também foi bastante empregado.
E erros da guerra de 2008, que foi também contra outro Estado, não se repetiram: havia coordenação clara, objetivos em escala e uma ação profissionalizada.
Houve ao menos duas barragens principais, uma perto das 5h e outra, por volta das 13h. As forças russas avançaram por terra também, aí apoiadas por lançadores múltiplos de foguetes Smerch e artilharia, embora não tenha sido uma invasão com características de ocupação militar até este momento.
O ataque foi por várias frentes, visando as áreas de cidades maiores, como Kiev, Kharkiv, Sumi e Kherson. Junto à capital, forças aerotransportadas por helicópteros se encontravam a 35 km da capital no fim da tarde, tendo tomado um aeroporto ao norte da cidade. No sul, blindados da Crimeia chegaram ao rio Dnieper sem oposição.
“Por enquanto, as tropas russas não entraram nas cidades, e sim as contornaram. Pode-se supor que a entrada de grandes massas numa operação terrestre está apenas começando”, diz Pukhov. Ele aponta que as ações no Donbass, a justificativa oficial de Putin, foram grandes, mas parecem visar distrair os ucranianos.
“O choque e a desorganização são muito fortes, mas dificilmente vão durar muito tempo”, avalia, apontando a resistência aos russos no aeroporto citado, em Hostomel. A extensão de uma questão política importante, o tamanho do apoio da Belarus de onde saíram blindados e helicópteros rumo a Kiev, ainda está em aberto.
Os ucranianos estão em apuros, ainda que possam causar muitos danos aos invasores. Numericamente, são cerca de 215 mil militares ao todo, ante quase 200 mil russos muito mais bem equipados. Desde que Putin anexou a Crimeia e apoiou a guerra civil que por fim lhe deu a desculpa para agir, em 2014, Kiev recebeu US$ 2,5 bilhões em ajuda militar americana.
Parece muito, mas não é. Nos últimos meses, sob a sombra da escalada militar russa, o Ocidente fez propaganda dos perigoso mísseis antitanque Javelin fornecidos por Washington, mas os números dificilmente farão frente a uma invasão maciça de blindados.
Para tanto, seria preciso interdição aérea, com aviões de ataque, ou mísseis. Os primeiros parecem ter sido neutralizados no primeiro dia da campanha, e o segundo, esses precisariam ser disparados pela Otan (aliança militar ocidental), o que não irá acontecer.
Ainda que a teoria militar multiplique defensores por dois ou três, a realidade numérica é desoladora para Kiev. Além das forças em si, o equipamento militar russo hoje é 70% moderno, antes metade disso ou menos antes da reforma militar iniciada após o quase fiasco do país na Geórgia, em 2008.
Mesmo que algum país da Otan resolvesse entrar na guerra, a aliança claramente não tem os elementos ou treino para ações coordenadas de forma convencional como a Rússia mobilizou agora.
Esta é uma dura lição para a aliança, que desde o começo da crise insiste que só irá se defender e nada poderá fazer pela Ucrânia. A lógica diz que Putin não se atreverá a mexer com países do clube porque, ao fim, não busca um embate direto com os EUA, contando mais com a insistência ocidental em sanções às quais já se acostumou.
E não se fala, obviamente, do arsenal nuclear que Putin balançou de novo na cara do Ocidente nesta quinta, em seu discurso. Ali, apenas os EUA são páreos, e ambos os lados sabem que não há vitorioso em guerra atômica. Isso dito, a possibilidade preocupa diversos russos, como deixou claro o Nobel da Paz Dmitir Mutarov.
Assim, a dúvida que se coloca agora é se Putin irá tentar forçar uma entrada para decapitar o regime em Kiev, o que ele evitou fazer ao não atacar o centro da capital, ou se irá forçar uma espécie de cerco ali e em pontos como Kharkiv.
A segunda opção é complicada porque expõe tropas que avançaram muito rapidamente. Não está claro se Putin pretende enviar uma força de ocupação, algo que segundo contas ocidentais demandaria 600 mil de seus 900 mil militares, ainda que usando unidades policiais. Para o público, o Kremlin nega isso, dando gás à ideia de que pretende derrubar o governo.
A consideração é bastante política. Como Putin diz em seus discursos, ele vê ucranianos e russos (e belarussos, aliás) como um só povo, a ser regido pelo Kremlin. Isso volta nos séculos, à fundação do Estado comum que gerou os três atuais.
Se quer dobrar Kiev à sua vontade e tirar o vizinho da órbita potencial da Otan e da União Europeia, será complicado fazê-lo se matar uma quantidade grande de ucranianos, principalmente sem uniforme. Até aqui, embora os EUA tenham ensinado que armas inteligentes costumam ser bem burras, a Rússia parece ter tentado poupar ao máximo áreas civis.
Só que para fazer o comediante que virou presidente Volodimir Zelenski desistir da briga, seu cerco precisa ser duradouro. “É possível que seja a intenção do lado russo, mas eu tenho pouca ideia de como isso será possível de ser feito por muito tempo”, diz Pukhov.
Para apresentador de TV e editor-chefe da revista Russia in Global Affairs Fiodor Lukaniov, a situação é complexa. “Mísseis russos em Kiev? É um pesadelo. Estou passado”, afirmou ele, que até a semana passada filiava-se à corrente dos analistas políticos que rejeitavam o alarmismo ocidental dos últimos meses, acreditando que Putin não dispararia.
Pukhov, considerações militares à parte, diz acreditar que, se a Rússia queria agir contra a Ucrânia, deveria tê-lo feito em 2014 e 2015 de forma decisiva, reinstalando o governo derrubado de Viktor Ianukovitch.
“Agora, temos uma longa e dura luta contra as perdas, especialmente porque desafiamos essencialmente os EUA e a Otan”, afirmou, ressalvando que o sucesso na campanha poderá “dar trunfos para um acordo”. Mas, diz, “o dano moral e político para a Rússia será colossal”, algo difícil de discordar.
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