Falta avaliação adequada antes de cirurgia em crianças e jovens trans, diz psicóloga

PATRÍCIA CAMPOS MELLO
NOVA YORK, EUA (FOLHAPRESS) – Crianças e jovens estão sendo submetidos a intervenções médicas para transição de gênero sem uma avaliação apropriada, e alguns acabam se arrependendo. Esse é o alerta da psicóloga americana Laura Edwards-Leeper, co-fundadora da primeira clínica para atendimento de crianças trans.

Segundo Edwards-Leeper, professora emérita da Pacific University, existe um aumento no número de jovens que se identificam como transgênero, o que é muito positivo.

“É definitivamente mais seguro se assumir como transgênero em muitos lugares do mundo, e isso é maravilhoso. Muitas pessoas que estariam se escondendo conseguem se assumir e acessar mais rapidamente os tratamentos de que precisam”, diz.

No entanto, muitos médicos estão indicando cirurgias irreversíveis em crianças, ou uso de hormônios que pode resultar em infertilidade, sem realizar uma avaliação aprofundada antes.

“Tenho medo de que essa discussão sirva de combustível para uma agenda conservadora, que quer bloquear o acesso de jovens trans para tratamentos que podem beneficiar muitos deles; não quero clínicas fechando as portas. Ao mesmo tempo, eu não acho que censurar essa discussão é uma solução.”
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PERGUNTA – A senhora fundou a primeira clínica de atendimento a crianças e adolescentes transgêneros nos EUA. Partindo da sua experiência de muitos anos com o tema, a senhora acha que a abordagem médica atual em relação a esses jovens é correta?
LAURA EDWARDS-LEEPER – Intervenções médicas (bloqueadores de puberdade, tratamentos com hormônios e cirurgia de afirmação de gênero) são muito apropriadas para jovens trans que foram avaliados de forma adequada.
A minha preocupação é com os jovens que não estão recebendo a devida avaliação antes de decidir se uma intervenção médica é a melhor abordagem naquele momento. Em muitos casos, em muitos lugares, essa avaliação não está sendo feita. A demanda por esses serviços é maior do que a oferta de profissionais qualificados para atender.
Então, muitas vezes, as clínicas precisam acelerar o processo todo senão a fila de espera vai aumentando. Muitos colegas querem atender esses jovens da melhor forma possível, mas acabam acelerando tudo e não há uma avaliação cuidadosa. Isso me preocupa. Há crianças e adolescentes sem histórico de disforia de gênero na infância que começam rapidamente a se submeter a esses procedimentos médicos.
Não há números específicos, mas nossa impressão é que isso está acontecendo com uma certa frequência. É preciso ter uma avaliação abrangente e sessões de terapia para garantir que um procedimento médico será a decisão correta.P. – Hoje em dia, 1,8% dos jovens com menos de 18 anos nos EUA se identifica como transgênero, mais que o dobro de cinco anos atrás, segundo o Trevor Project. O número vem crescendo porque os jovens e as pessoas estão mais conscientes e informados, e o preconceito vem diminuindo, então mais pessoas se sentem seguras para se identificar? Ou há também mais pressão social e influência das redes sociais?
LEL – Acho que são as duas coisas. É definitivamente mais seguro se assumir como transgênero em muitos lugares do mundo, e isso é maravilhoso, muitas pessoas que estariam se escondendo conseguem se assumir e acessar mais rapidamente os tratamentos de que precisam.
Mas também acho que, em parte, há pressão dos amigos, e há exploração de identidades, comum durante a adolescência. Adolescentes questionam seu gênero, o que é ótimo, é saudável. Mas como o resultado disso, às vezes, pode ser intervenções médicas permanentes, é preciso abordar isso de forma mais pensada, com avaliação adequada.P. – Como devem reagir os pais de jovens ou crianças que afirmam não se identificar com o gênero designado em seu nascimento? Qual é a melhor maneira de abordar a questão?
LEL – A melhor coisa é apoiar a criança ou jovem e, juntamente com um profissional de saúde mental, conversar. Nessas conversas com o filho ou filha, falar sobre os passos da transição. Pode começar com um corte ou mudança no cabelo, vestir roupas do gênero com o qual o jovem se identifica, mudar seu nome e pronomes que adota.
É sempre bom ter uma pessoa de fora, um profissional de saúde, para ajudar o jovem e a família a navegar esse processo. E é sempre importante os pais demonstrarem que apoiam os filhos e filhas.P. – Ainda é comum que pais achem que a criança está apenas passando por uma fase, e que não queiram apoiá-la em sua decisão de fazer a transição de gênero?
LEL – Nos EUA, houve uma grande mudança. Hoje em dia, grande parte dos pais com que converso é muito aberta ao fato de seus filhos serem trans. Há outros que se surpreendem porque o filho ou filha adolescente, que nunca tiveram um histórico de disforia de gênero, assumem-se como transgênero.
Esses pais dizem que, se os filhos realmente se sentirem assim, eles vão apoiá-los completamente se quiserem fazer a transição, com procedimentos médicos ou não. Mas eles querem um apoio profissional e orientação, para se sentirem mais confiantes de que é isso realmente que está acontecendo, porque isso não encaixa no que sabiam sobre o filho. O melhor é os pais encorajarem os filhos a falar mais sobre isso, ouvi-los com cuidado, perguntar como se deram conta de sua disforia.
Muitas vezes, os jovens já vêm sentindo isso há muito tempo e os pais não tinham ideia. Então, se os pais deixam aberta essa porta, deixam a criança confortável para falar. E terapia pode ajudar muito quando a criança não se sente segura o suficiente, ou confortável, para falar sobre sua disforia de gênero com os pais. Muitas vezes, um terapeuta pode ajudar a fazer essa ponte com os pais.P. – Em artigo recente, a senhora afirma que há uma parcela de jovens que revertem a transição de gênero, embora seja uma minoria. Por que isso acontece?
LEL – Não há muitos estudos sobre isso. Um estudo recente, de Lisa Littman, com cem pessoas que reverteram a transição de gênero, mostrou que 38% acreditavam que sua disforia, seu sentimento de não se identificar com o sexo com o qual foram designados no nascimento, deveu-se a “alguma coisa específica, como um trauma, um abuso, ou um distúrbio de saúde mental”.
E 55% disseram que “não receberam uma avaliação adequada de um médico ou profissional de saúde mental antes de começar a transição de gênero”. Muitas pessoas sofrem um trauma e desenvolvem disforia como resultado desse trauma. Outros que reverteram a transição dizem ter sido muito influenciados por amigos e pelas redes sociais para transicionar, e que isso, no momento, parecia a solução para vários problemas que estavam vivendo.
Alguns não se arrependem, dizem: eu precisava disso naquela época, mas agora, em um outro momento da minha vida, acho que não preciso mais de hormônios. Outros ficam realmente mal, arrependem-se e acham que os profissionais médicos não os ajudaram a avaliar direito na época.
Muitos médicos, inclusive, usam com crianças e jovens o termo de consentimento informado de adultos. Eles ouvem o paciente dizer que precisa de um procedimento, e aí simplesmente fazem. Seguem o raciocínio de que isso não é uma questão de saúde mental, é uma questão de identidade, e as pessoas é que sabem qual é sua.P. – Médicos afirmam que os bloqueadores de puberdade são uma abordagem médica mais conservadora, porque não têm efeito permanente. Quão difícil é desfazer procedimentos médicos de transição de gênero?
LEL – Não sou médica, mas segundo a minha experiência com pacientes e conversas com meus colegas médicos, os bloqueadores são reversíveis e muito seguros, a não ser que a pessoa os use por muitos anos, o que causa danos ósseos.
Os bloqueadores ajudam as crianças e jovens a ganhar tempo, enquanto decidem se vão querer fazer outros procedimentos médicos para transição de gênero (hormônios femininos ou masculinos, mastectomia ou implantes nos seios, redução do pomo de Adão, remoção de pênis, útero ou ovários, construção de vagina e pênis).
Quando o jovem passa dos bloqueadores de puberdade para hormônios, pode se tornar permanentemente infértil. E quando você tem crianças de oito ou nove anos tendo que decidir sobre sua fertilidade no futuro, é preciso pensar com cuidado sobre a decisão de tomar os hormônios, e pensar junto com as famílias, porque muitas vezes essas crianças são muito novas.P. – Ao mesmo tempo, transformou-se em um tabu recomendar mais sessões de terapia antes de decisões sobre hormônios e cirurgias de transição de gênero para crianças e jovens. E alguns psicólogos são acusados de tentar fazer “terapia de conversão” ao recomendar terapia de exploração de gênero. A senhora já foi criticada por isso?
LEL – Sim, já fui acusada de ser preconceituosa, transfóbica, de acreditar saber mais do que as próprias crianças sobre sua identidade de gênero. Mas eu recebo um número muito maior de reações positivas, por propor que a questão seja abordada com mais nuances.
Como eu disse no início, eu não sou contra adolescentes trans passarem por procedimentos médicos de transição de gênero. Eu só me preocupo porque alguns médicos não estão seguindo padrões de atendimento, e muitos usam termo de consentimento informado de adultos com crianças e adolescentes. Isso é irresponsável e antiético.
Eu acredito que é preciso envolver especialistas em saúde mental na avaliação desses jovens, e os pais. Muitos pais me dizem que eles são totalmente excluídos do processo, e são acusados de transfobia quando fazem muitas perguntas, querem desacelerar o processo ou procuram terapia para o filho ou a filha.P – A senhora menciona em seu artigo para o Washington Post um médico que critica a insistência em se fazer uma avaliação psicológica antes de procedimentos. Ele diz: “Se uma pessoa me diz que é trans, eu acredito. Não é preciso terapia, porque ser transgênero não é uma patologia.” Como a senhora reage a essa crítica?
LEL – Eu concordo 100% com o fato de que a transgeneridade não é uma patologia. Mas nós estamos falando sobre disforia de gênero. Eu e muitos colegas temos visto que alguns jovens experimentam disforia de gênero em algum momento, mas não são transgênero.
Pode ser por causa de um histórico de trauma, por estarem passando pela puberdade e se sentirem desconfortáveis como mulher ou homem, e terem muitos amigos trans -muitas vezes há o contágio social. Então muitos dos jovens que começam a sentir a disforia de gênero podem não se beneficiar de intervenções médicas.
É preciso determinar, de forma conjunta com a pessoa, se esse é o melhor caminho para ela ou ele. Se a pessoa, após ter todas as informações, afirmar que quer os procedimentos, está ótimo, ela tomou uma decisão com pleno conhecimento.P. – ​De certa forma, convivemos com problemas antagônicos -a senhora aponta que há pessoas se precipitando para transição de gênero com intervenções médicas permanentes, sem a devida avaliação, mas, por outro lado, a maioria das pessoas transgênero no mundo não têm acesso a tratamentos, e legisladores conservadores tentam dificultar ainda mais esse acesso, principalmente para crianças trans.
LEL – É um equilíbrio muito difícil. A última coisa que eu e Erica [Anderson, psicóloga trans que é especialista em atendimento de crianças trans] queríamos, ao escrever o artigo para o Washington Post, era alimentar a agenda conservadora, ou contribuir para a falta de tratamento para esses jovens.
Mas, ao mesmo tempo, eu acho que não faz nenhum bem a gente não ter essas conversas sobre o que está acontecendo. Tenho medo de que essa discussão sirva de combustível para uma agenda conservadora, que quer bloquear o acesso de jovens trans para tratamentos que podem beneficiar muitos deles; não quero clínicas fechando as portas. Ao mesmo tempo, eu não acho que censurar essa discussão é a solução.

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