Furo no teto por eleição não garante nem comida para mais pobres

BRASÍLIA, DF (FOLHAPRESS) – Tratada no governo como a boia salva-vidas para a tentativa de reeleição de Jair Bolsonaro, o programa que vai substituir Bolsa Família nasce com um valor nominal de mais que o dobro do atual, mas a corrosão da inflação e os anos sem reajuste mantêm o benefício insuficiente para a compra de uma cesta básica mensal.

A ideia do governo é que o Auxílio Brasil, aposta de Bolsonaro para atrair voto do eleitorado de baixa renda, seja de ao menos R$ 400 de novembro deste ano até dezembro de 2022. Após isso, não há garantia de que esse valor será mantido.

De acordo com o Dieese (Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos), uma cesta básica individual mensal com treze grupos alimentares custava em média R$ 497 em sete capitais do Norte e Nordeste (Belém, Aracaju, Fortaleza, João Pessoa, Natal, Recife e Salvador), em setembro.

Ou seja, ainda a depender da variação inflacionária de outubro, o valor que será pago para a maioria das famílias no Auxílio Brasil representará cerca de 80% do valor da cesta básica necessária para alimentação saudável de um adulto, nessas capitais.

Em uma casa com dois adultos e duas crianças, por exemplo, seria necessário cerca de R$ 1.500 (o Dieese considera meia cesta por criança).

A análise do benefício desde 2004 -quando o programa foi criado- até agora mostra que o valor médio nunca foi suficiente para a compra de todos os itens da cesta calculada pelo Dieese.
A média do governo Lula (2003-2010) foi de 47% de uma cesta. Dilma Rousseff (2011-2016), 55%, Michel Temer (2016-2018), 50%, e Bolsonaro, 47% (excluídos os meses de pagamento do Auxílio Emergencial).

Embora tenha havido reajustes em anos eleitorais no passado, o aumento pretendido por Bolsonaro a partir de novembro é o maior deles e tem prazo para acabar em dezembro de 2022, ou seja, dois meses após a disputa em que o presidente deve tentar a reeleição.

Hoje, o benefício médio concedido pelo Bolsa Família gira em torno de R$ 190 e atende a cerca de 14 milhões de famílias. Além do aumento, a ideia do governo é que o Auxílio Brasil alcance quase 17 milhões de famílias.

A fonte dos recursos para financiar o pagamento não foi anunciada, nem qual o valor que cada família beneficiada vai receber a partir de janeiro de 2023 -em tese, elas voltarão para o valor fixo, que deve ir para algo em torno de R$ 220, segundo o governo.

O Bolsa Família não é reajustado desde julho de 2018, quando a gestão Temer concedeu aumento médio de 5,67%, na véspera do Dia do Trabalho.

A inflação acumulada a partir de então, de julho de 2018 até setembro deste ano (INPC), foi de 19,1%.

O programa tinha sofrido correções durante os governos dos petistas Luiz Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff.

Bolsonaro sempre criticou o Bolsa Família em seus tempos de deputado federal. Na época, ele afirmava que programas como Bolsa Escola e Bolsa Família serviriam apenas para incentivar os pobres a ter mais filhos e, com isso, aumentar a fatia que recebem de benefícios.

“Só tem uma utilidade o pobre no nosso país: votar. Título de eleitor na mão e diploma de burro no bolso, para votar no governo que está aí. Só para isso e mais nada serve, então, essa nefasta política de bolsas do governo”, afirmou em novembro de 2013 no plenário da Câmara.

Já durante a corrida presidencial, mudou o discurso. Em 2019, pagou um 13º salário aos beneficiários, promessa de campanha. Na prática, isso levou a um ganho real de 3,6% naquele ano.

A socióloga Letícia Bartholo, especialista em políticas públicas e gestão governamental e ex-secretária nacional adjunta de Renda de Cidadania (2012-2016), afirma que o jeito com que o governo trabalhou a questão transmite à população uma situação de “insegurança de renda”.

“A cada dia o benefício tem um valor, a gente não sabe por que R$ 400, porque não foram apresentados estudos de impacto sobre a pobreza e desigualdade, nem estudo sobre impacto orçamentário. A sensação que pode estar sendo transmitida para a população é de insegurança de renda. Você não sabe quando vai poder contar com esse benefício ou não, e qual o valor ele terá”, diz.

Ela afirma ser difícil disfarçar a motivação eleitoral da ampliação temporária do programa.

“A impressão é de quase estar brincando com a pobreza, como se fosse um leilão. Não importa a segurança de renda das famílias, importa a minha motivação eleitoral. Vai ser um grande susto para as famílias mais pobres [caso haja a redução em 2023], com impactos claros na alimentação delas, no bem-estar dessas famílias.”

Desde o início do programa, o benefício teve, até março deste ano (último mês sem pagamento de auxílio emergencial), correção de 156%, índice similar ao do INPC (153%). Já a cesta básica medida pelo Dieese nas capitais do Norte e Nordeste subiu muito mais, 243%.

A economista Patrícia Costa, supervisora das pesquisas de preço do departamento intersindical, afirma que embora seja positivo o aumento do benefício em um período de pandemia e desemprego alto, é preciso que a inflação de alimentos seja controlada e a economia melhore, para que o reajuste não tenha efeitos efêmeros.

“Há um número expressivo de pessoas que vai ficar de fora disso [do novo Bolsa Família] e também é preciso resolver a questão da crescente inflação de alimentos, do gás, da energia. Se vier só o auxílio, ele rapidamente ele vai ser comido pela inflação e você não vai resolver o problema das pessoas, que vão continuar com fome, sem emprego e sem perspectiva.”

Para o economista Marcelo Neri, diretor do FGV Social, a perda do poder de compra causada pela inflação se associa à volatilidade do valor transferido às famílias pobres.

“Quando você introduziu o auxílio emergencial generoso e depois reduziu o auxílio emergencial, e suspendeu em certo momento, coisa que pode acabar acontecendo no mês que vem, você cria uma volatilidade. Vai ter meses em que a família vai ter muito pouco, e meses em que vai ter mais. E esses meses tendem a ser próximos do calendário eleitoral”, afirma.

Além do caráter eleitoreiro nas discussões feitas pelo governo, Neri ressalta ainda a maior carestia na cesta de consumo das pessoas mais pobres.

“Os itens da cesta de consumo dos pobres, e aí levando em conta não só alimentação, mas todas as despesas, o botijão etc,, estão seis pontos percentuais acima [do benefício de 2014], o que é muito. É ruim no sentido ético da palavra, porque é um truque que você faz para ludibriar as pessoas. Dou um reajuste em ano de eleição, depois não. Queda de renda nominal é uma coisa rara, principalmente quando a inflação está alta, e no fundo é isso que está sendo proposto [a partir de 2023].”

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