RIO DE JANEIRO, RJ (FOLHAPRESS) – O despertador de Helloá tocou, mas daquela vez ela não conseguiu desligá-lo. Seus músculos não respondiam. “Pensei ‘estou morrendo’, mas eu estava tão mal, minha rotina era tão triste, que achei que se acabasse ali não seria tão ruim”, conta a administradora.
Era uma crise de “burnout”, resultado de cinco meses de prazos impossíveis no novo emprego, somados a várias horas de estudo na faculdade e nenhuma de descanso. “Eu pensava que o sofrimento fazia parte do sucesso. Trabalhe enquanto os outros dormem, estude enquanto os outros se divertem.”
O colapso também veio depois de diversos avisos ignorados: dores de cabeça insistentes, azia constante, dificuldade para dormir e até uma dor aguda no peito que ela, na época com 21 anos, imaginou ser um infarto. Chegou a avisar os chefes, mas ouviu que estava sendo fraca.
Sete anos e muitos tratamentos depois, Helloá Castro, hoje aos 28, criou o perfil “Vencendo a Síndrome de Burnout” nas redes sociais e dedica seu tempo a informar e palestrar sobre o distúrbio emocional. E não são poucos os brasileiros que se preocupam com o assunto.
Uma pesquisa lançada pela empresa Ipsos para o Dia Mundial da Saúde Mental, celebrado em 10 de outubro, mostra que 75% dos entrevistados no Brasil pensam sobre sua própria saúde mental com muita ou considerável frequência. É a maior marca entre os 30 países que participaram do questionário – a média mundial é de 53%.
Logo depois no ranking aparecem a África do Sul (73%) e o Peru (71%). No outro extremo estão os chineses (26%), os sul-coreanos (31%) e os russos (33%), onde a maioria diz não refletir nunca ou quase nunca sobre a questão.
A pesquisa ouviu 21.513 pessoas de 16 a 74 anos, entre 20 de agosto e 3 de setembro, sendo cerca de 1.000 no Brasil. O questionário foi aplicado de maneira online, portanto abrange a parcela da população com acesso à internet, considerando o perfil demográfico de cada lugar.
Para 40% dos entrevistados por aqui, distúrbios mentais são um dos principais problemas sanitários enfrentados atualmente pelo país. Esse número cresceu 13 pontos percentuais em relação ao ano passado, influenciado pelo luto e pelo isolamento da pandemia de Covid-19.
“Temos visto o Brasil sempre no topo do ranking em pesquisas que fazemos sobre saúde mental, e isso vem aumentando ano após ano. Por um lado, a pandemia agravou o problema, mas por outro deu mais espaço para falar sobre isso”, diz Helena Junqueira, coordenadora da pesquisa.
Em maio de 2020, por exemplo, o país apareceu em primeiro lugar entre os que sofriam de ansiedade (41% diziam se sentir assim) ou de enxaqueca (14%) e entre os que afirmavam estar comendo excessivamente (39%). Era também o mais solitário (53%) em outro questionário aplicado em janeiro.
“Transtornos mentais são muito mais comuns do que as pessoas imaginam. Durante um ano, um quarto da população vai desenvolver algum problema. Na vida, será cerca de metade. Não é muito diferente de usar óculos”, ilustra Jair Mari, chefe da psiquiatria da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo).
Segundo o médico, o aprofundamento da desigualdade e da insegurança econômica ajudam a explicar por que o Brasil sustenta altos índices de ansiedade e depressão. Tem muito impacto ainda o que ele chama de violência epidêmica no país.
“A saúde mental tem um fator social determinante. Os Estados Unidos, por exemplo, têm níveis muito parecidos com os nossos. Tudo indica que isso pode estar relacionado à desigualdade: a pessoa que não tem nada olha para quem tem tudo”, afirma.
Outra hipótese para a preocupação com o tema no país é cultural –segundo essa visão, os brasileiros estariam mais dispostos a demonstrar suas emoções do que moradores de outros lugares. Isso também ajudaria a entender, de acordo com o psiquiatra, por que na China os transtornos mentais são externalizados e investigados com menos frequência.
Globalmente, quem tende a se importar mais com sua própria saúde mental são mulheres e jovens, mostra a pesquisa da Ipsos. A parcela dos que pensam nisso com frequência é de 58% entre elas e 48% entre eles. Entre pessoas de até 35 anos é de 61%, contra 42% para pessoas acima dos 50 anos.
“A grande maioria dos meus seguidores na internet são mulheres, que se sentem sobrecarregadas e procuram ajuda mais cedo”, diz Helloá Castro. “Os homens não falam, muitas vezes canalizam o tratamento do ‘burnout’ para o álcool ou drogas. Quando chegam em mim é porque já esgotaram todas as possibilidades.”
Apesar de 78% dos entrevistados brasileiros acharem que seu bem-estar mental e físico têm a mesma importância, 55% acreditam que o sistema de saúde do país prioriza o cuidado apenas com o corpo –número superior à média dos outros países.
“Há um vácuo de atendimento enorme”, concorda o psiquiatra Jair Mari. “Transtornos mentais são responsáveis por um quinto das incapacitações, mas só cerca de 2% do orçamento da Saúde é aplicado no tema. Na nossa realidade achamos que precisaria ser pelo menos 6%. Canadá e Reino Unido aplicam 11%”, afirma.
Para o médico, existe uma ideia de que a população brasileira toma muito remédio, mas isso só é válido para a classe média-alta. Aqui, afirma, impera a “lei dos cuidados invertidos”: quem precisa menos tem mais, e quem precisa mais tem menos.
Um paper publicado por ele e outros pesquisadores em 2014 mostrou que só 20% das crianças e adolescentes com distúrbios psiquiátricos –que deveriam ser priorizados pelo alto risco de suicídio– tiveram acesso a profissionais da área nos 12 meses anteriores.
Mari critica um desmantelamento da assistência à saúde mental em todos os níveis do sistema de saúde nos últimos anos, que conta apenas com algumas ilhas de atendimento e não tem leitos suficientes para internação de casos agudos. Ele cobra melhor gestão, prontuários únicos, continuidade nos atendimentos e inovação tecnológica.
Quem trabalha na área vê ao menos um legado positivo da pandemia. A constante exposição do tema pela mídia e por marcas resultou numa redução do preconceito sobre os transtornos emocionais.
A consultoria de saúde Mercer Marsh apontou um crescimento de 62% no número de empresas que implantaram serviços nesse sentido aos funcionários. Nessa esteira surgiu também o movimento #MenteEmFoco, da Rede Brasil do Pacto Global da ONU, que incentiva o setor privado a adotar uma série de medidas, como um profissional fixo nas companhias.
“Quando comecei a estudar sobre saúde mental, há sete anos, não havia quase nenhuma informação na internet. Agora teve um boom de procura, hashtags, páginas novas, universidades falando sobre o assunto”, comemora Helloá, que ressalta que, para além do discurso, é preciso mudar a cultura.
Notícias ao Minuto Brasil – Mundo