AMANDA LEMOS
SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Embora muitos julguem passar horas no smartphone como perda de tempo, essa não parece ser mais a realidade. Mais que um aparelho para se comunicar e divertir, o celular é percebido atualmente sobretudo como um instrumento de trabalho -essencial para projetar a autopromoção, numa espécie de “efeito tiktok”.
É isso o que aponta um levantamento feito pela consultoria Grupo Consumoteca. Questionados sobre qual seria a área de suas vidas mais prejudicada caso ficassem uma semana sem o smartphone, 30% dos entrevistados brasileiros apontaram o campo profissional.
O levantamento foi feito com 2.000 pessoas entre 18 e 55 anos, de classes A, B e C.
Para 25%, o grande desafio de ficar esse período sem o smartphone seria a rotina de atividades pessoais, como pagamento de contas e pedidos de delivery. Para outros 13%, o maior problema seria o acesso à informação.
Conseguir praticar atividades de lazer seria o maior entrave para 11% dos entrevistados -mesmo percentual dos que apontam estudar como o maior problema caso fiquem sete dias sem um smartphone.
De acordo com a pesquisa, a área menos afetada seria a dos relacionamentos pessoais -apenas 8% dos respondentes disseram que o maior problema na ausência do celular se localizaria aí.
“Esse resultado traduz uma coisa muito simples: o smartphone como lazer ficou de lado e acabou virando um instrumento de trabalho”, diz Michel Alcoforado, antropólogo e sócio-fundador do Grupo Consumoteca.
Entre as mudanças no campo do trabalho, diz o antropólogo, veio a oportunidade para se reinventar no mundo online e tirar proveito da ferramenta para se projetar profissionalmente. Segundo a consultoria, para 57% dos entrevistados o smartphone é importante para autopromoção.
“É como se fosse um ‘efeito tiktok’, de compartilhar tudo o que faz, mostrar seu trabalho para se projetar e mostrar quem é você profissionalmente”, afirma.
Para o antropólogo, alguns dados reforçam esse viés da autopromoção. O levantamento mostrou que 30% dos entrevistados acreditam que a promoção pessoal é um dos pontos positivos do uso do smartphone. Assim, a reputação pessoal de um indivíduo influencia diretamente a profissional, que passa a ter mais relevância e importância.
“Olhando para trás, nos anos 1980, nossos pais ganhavam pelo que sabiam fazer. Já nos anos 1990 e 2000, chegou a ‘geração Kumon’, quando os pais colocavam os filhos em vários cursos. Agora chegamos ao ‘saber ser’. Não é mais só um diploma: você mostra como colocar em prática”, afirma Alcoforado.
Por outro lado, para Christian Dunker, psicanalista e professor do Instituto de Psicologia da USP (Universidade de São Paulo), a presença excessiva do smartphone na vida cotidiana e o comportamento na vida online geram uma série de problemas, como um sentimento de autovigilância.
“O celular acaba criando um efeito paranoia: o que será que vão pensar? Quem está vendo isso? Como devo me portar profissionalmente em uma rede e em outra não?”, diz o psicanalista. “Isso são coisas típicas que contribuem para o aumento da depressão e do burnout.”
Dunker aponta que a interferência do celular pode ser mais nociva do que o dos computadores por funcionar como uma espécie de extensão do corpo.
“O smartphone se tornou a primeira coisa que fazemos no dia: há muitos casos em que o sujeito sai de uma posição mais íntima, do sono, e já vai para um email de trabalho”, diz. “Isso é como passar a receber telefonemas no meio da noite, causando uma disrupção no seu fluxo de sentimentos.”
Christian Perrone, pesquisador de direitos e tecnologias do ITS Rio (Instituto de Tecnologia e Sociedade do Rio), afirma que o cruzamento atual entre o mundo virtual e o físico aponta para onde caminhamos em termos de vida social e tecnologia. “Socialmente tínhamos uma barreira clara entre horário de trabalho e de lazer, essa barreira sofreu adaptações ao longo dos anos. A lógica de estar sempre conectado era diferente”, diz.
Se ligações eram algo menos frequentes na vida profissional, passaram a ser em grande volume e por vídeo. “Isso traz uma modificação no ambiente que era um espaço limitado, agora ele é mais global, ele é virtual. Você pode estar no mesmo dia em três lugares diferentes.”
Na tentativa de suprir dinâmicas sociais antes vivenciadas fisicamente, surgem diversas ferramentas para tentar substituir esse campo de trabalho, diz Perrone. “Vemos empresas de tecnologia como Zoom tornando a plataforma cada vez mais versátil, com traduções simultâneas e versões para palestras”, afirma. “Já o Facebook fala em óculos conectados e reuniões por VR [realidade virtual]”.
O avanço da tecnologia e as mudanças sociais, diz Perrone, rumam para uma sociedade cada vez mais digital, como se fossem dois mundos diferentes. O pesquisador lembra do filme Matrix, de 1999, quando o personagem principal Neo tem de fazer uma escolha entre a pílula azul, que o permitiria esquecer tudo e ir para a realidade virtual, e a pílula vermelha, que o deixaria no mundo real. “A diferença é que agora estamos o tempo inteiro conectados”, afirma.
Se hoje o celular é o intermediário entre o real e virtual, no futuro podemos ter outros instrumentos, como óculos e dispositivos inteligentes que ocuparão ainda mais o cotidiano, diz o pesquisador.
Nesta semana, por exemplo, o Facebook anunciou que criou uma linha de óculos inteligentes em parceria com a grife Ray-Ban. Segundo a empresa, o objetivo do novo produto é oferecer experiências em realidade aumentada.
Em entrevista recente, Mark Zuckerberg, presidente da big tech, disse que o futuro do Facebook é a construção de um “metaverso”: um universo digital construído acima e em paralelo à realidade em que vivemos. “Essa realidade virtual vem para quebrar barreiras entre o físico e o digital”, diz Perrone.
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