VILNIUS. LITUÂNIA (FOLHAPRESS) – Quando enviaram um pedido de socorro à organização internacional Alarm Phone, eles estavam havia cinco dias barrados numa “zona de ninguém” entre a União Europeia e a Belarus.
“Estou lhe dizendo, eu não tenho nada aqui, eu tenho tudo ali. Você entende? Por favor, amigo”, diz um dos imigrantes iraquianos a guardas lituanos enfileirados.
“Volte para a Belarus! Você entende? Volte!”, responde o agente.
“Como voltar?”, pergunta o estrangeiro, em inglês. A metros dali, uma patrulha belarussa impede que o grupo passe.
O caso, gravado em vídeo e confirmado pela guarda de fronteira lituana, não era isolado: há de 4.000 a 5.000 estrangeiros espalhados ao longo das fronteiras, afirmou na última semana o ministro da Defesa lituano, Arvydas Anushauskas.
Desde 3 de agosto, quando a Lituânia reforçou a guarda e baixou um decreto para conter a chegada de centenas de imigrantes vindos da Belarus, mais de 1.500 foram impedidos de entrar no país báltico.
“É um jogo cínico feito com vidas humanas”, afirma Maurice Sierl, porta-voz da Alarm Phone, que atribui a crise ao ditador belarusso, Aleksandr Lukachenko.
Segundo o ativista, que conversou com os iraquianos por videochamada no dia 7, eles tremiam de frio e um, doente, desmaiou mais de uma vez.
O impasse prosseguiu até o pôr do sol: os imigrantes repetem “Quero ir para casa. Estou com muita fome. Por favor, ajude. Preciso beber água”, sem obter resposta além do ganido de um dos cães de guarda.
Depois de alguns dias sem contato, Sierl soube no dia 13 que o governo iraquiano os havia repatriado. Na mesma tarde, o Alarm Phone recebeu novo pedido de socorro, desta vez de três mulheres e dois homens barrados na altura da cidade polonesa de Kuznica.
Àquela altura, ao menos 4.000 estavam em campos de refugiados lituanos ampliados ou improvisados às pressas. Após o número de entradas ilegais saltar de 6, em março, para 3.115 em julho, o governo triplicou o patrulhamento de fronteira e enviou militares, cães, helicópteros e câmeras noturnas aos 670 km de divisa com a Belarus.
Uma “cerca anti-imigrantes” de arame farpado e concertina avança ao ritmo de mais de meio quilômetro por dia. Terá quatro metros de altura, 508 km de extensão, pontas farpadas em formato de Y e custo de 150 milhões de euros (R$ 929 mi), segundo o diretor de comunicação do Serviço de Guarda da Fronteira, Rokas Pukinskas.
Os estrangeiros bloqueados pela Lituânia ainda tentaram entrar pela Letônia e pela Polônia, em vão. A primeira decretou estado de emergência, no dia 11 de agosto e desde então barrou 436 pessoas.
A Polônia, após receber 491 pedidos de asilo na primeira semana de agosto -nove vezes mais que na semana anterior-, já impediu 1.342 entradas.
Relatos de pessoas numa “zona de ninguém” também chegaram ao Acnur (agência para refugiados da ONU), diz Elisabeth Arnsdorf Haslund, porta-voz da entidade: “É um grupo muito diverso -jovens, idosos, mulheres, homens, famílias de várias nacionalidades–, que precisa de ajuda humanitária”.
Esses estrangeiros “vagam pelas florestas do oeste belarusso, vivem em hotéis enquanto o dinheiro acaba”, segundo a descrição do ministro da Defesa lituana ao jornal Delfi, e a mídia belarussa diz que casas abandonadas em vilarejos já estão sendo ocupadas por eles.
A crise deve se agravar com o fim do verão. As noites esfriam rapidamente em setembro na zona de fronteira, e em outubro ou novembro começa a nevar. No inverno, a temperatura média dessa zona é de -6°C, com os termômetros negativos mesmo durante o dia.
O frio já é sentido mesmo pelos que entraram de forma legal e aguardam a análise de pedido de refúgio, como o russo Anton (nome fictício, a pedido dele). No campo de Pabradé, onde está desde junho, “as tendas militares têm ar-condicionado, mas não aquecedor”. “Quando chove encharca tudo”, contou na tarde do dia 11.
O campo lotou desde que árabes e africanos começaram a chegar. “Lukachenko abriu uma enorme janela de passagem para a Europa, é um programa em larga escala o jeito como as pessoas estão sendo trazidas”, descreve Anton.
“Os estrangeiros são uma arma pesada nas mãos do ditador. Se atacar com bombas, a Otan vai se defender. Ele usa os árabes como suas balas, e o dano é muito maior”, diz o russo.
A tese de que o ditador da Belarus está por trás dessa crise é compartilhada por autoridades lituanas e da UE, que nesta semana fez questão de separar a ameaça de crise imigratória decorrente dos conflitos no Afeganistão do que chama de “crise de agressão” provocada por Lukachenko.
“É um ato severo de agressão arquitetado para provocar”, afirmou a comissária europeia responsável por imigração, Ilva Johansson, em visita à Lituânia. “Usar os migrantes como arma, empurrando as pessoas contra as fronteiras, é inaceitável”, afirmou o chefe da diplomacia do bloco, Josep Borrell.
São vários os relatos de que a Belarus facilitou vistos de entrada e a logística entre o aeroporto de Minsk e as fronteiras da UE a imigrantes, que pagaram entre 1.000 e 3.000 euros (de R$ 6.200 a R$ 18,6 mil).
“Também é preciso subornar os guardas de fronteira belarussos, que sabem exatamente as rotas e mostram os pontos em que há menos patrulha lituana”, afirma Victar Savich, 31, ex-diretor de uma indústria madeireira que se exilou no país báltico após ser perseguido por Lukachenko.
“Acreditaram na história belarussa de que a Lituânia seria passagem livre para chegar a outros países da União Europeia.”
Foi o caso de Mujbil Muhammad, que diz ter feito um empréstimo para levantar os 10 mil euros (cerca de R$ 62 mil) para a viagem da mulher e quatro filhos –”todos com menos de 10 anos”– ao bloco europeu.
A maior parte do dinheiro ficou com “um taxista que conhecia a passagem pela fronteira”, afirmou Muhammad, localizado por meio de um telefone passado por sua mulher a Savich. Como outros entrevistados, embora confirme as conexões belarussas, o iraquiano evita dar detalhes.
Savich diz que a maioria dos recém-chegados ao campo de Kabeliai –onde ficou uma semana, antes de se instalar em Minsk– não pretende ficar na Lituânia: “Os árabes e indianos, principalmente, têm dinheiro e parentes na Finlândia, na Alemanha”.
Em Pabradé, conversas sobre viagens para a Alemanha são cada vez mais frequentes, segundo Anton, principalmente depois que a Lituânia anunciou que vai acelerar deportações.
Na cidade de Alytus, um grupo de 36 fugiu na madrugada do dia 12, após cavar um buraco sob a cerca. Rastejaram pelo mato, chegaram a uma linha de trem e de lá seguiram na direção da Polônia, segundo o governo. De acordo com dados do Ministério do Interior, mais de 350 estrangeiros que desapareceram dos alojamentos.
O governo investiga a ação de quadrilhas que prometem fazê-los chegar à Polônia ou à Alemanha, por cerca de 8.000 euros (cerca de R$ 50 mil). Na semana retrasada, um desses esquemas foi relatado mostrado por um repórter da emissora pública LRT, que se fez passar por imigrante.
Lituânia, Letônia e Polônia agora tentam acelerar a análise de pedidos de refúgio e a repatriação dos que não se enquadram.
O objetivo é aliviar a pressão interna, que já provoca reações como as de Rudninkai, onde 800 estrangeiros foram alojados em uma área militar.
Na tarde do dia 10, pela tela de arame, imigrantes gritavam em inglês “água, por favor” e “nós queremos falar com ela”, mas os guardas não permitiram que a Folha os entrevistasse. Nove vans policiais guardavam a entrada do campo.
À noite, houve protestos, motim e fugas, pela segunda vez neste mês, para revolta dos moradores do vilarejo próximo, incomodados com a improvisação do campo em suas redondezas.
“Ninguém consegue mais dormir à noite. Eles passam, avaliam nossas casas, sempre há fugas”, afirmou um lituano de 42 anos, que não quis se identificar.
Na cerca de seu vizinho, uma faixa estampa um grande símbolo vermelho de “Pare” e pede a saída dos imigrantes da cidade.
Em Pabradé as condições são menos críticas, conta Anton, enquanto anda pelo campo para mostrar suas instalações. Mulheres e crianças ficam em apartamentos de alvenaria, há playground e quadra de esportes.
A cantina serve refeições vegetarianas (para os hindus) e halal (para os muçulmanos), afirma o russo, e crianças de até 12 anos recebem reforço de leite e chocolate. “Mas a resposta a uma crise repentina pode não funcionar a longo prazo”, diz Haslund, do Acnur, e um dos problemas é também o inverno rigoroso. Casas feitas em contêineres estão sendo preparadas para 1.000 pessoas na região de Medininkai e em alguns dos campos já existentes.
A Lituânia abriu um programa de repatriação voluntária, que até agora teve apenas 20 adesões –na semana passada, voltou para casa o primeiro iraquiano.
Ryan Schroeder, porta-voz da OIM (Organização Internacional de Migração), afirma que o fluxo pode crescer quando mais imigrantes ficarem sabendo da opção.
Não será tão breve, porém: na semana passada, o governo lituano tentava contratar intérpretes de árabe e curdo (idioma de metade dos iraquianos que entraram na UE) para conseguir ao menos identificá-los.
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