ANNA VIRGINIA BALLOUSSIER
SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – “Há uma janela ideal para testar novas vacinas, e ela já está fechando. Não é ético, quando você já tem vacinas aprovadas no mercado, conduzir um teste clínico controlado por placebo. Você estaria deixando de vacinar uma parte da população dando placebo a ela
Natalia Pasternak
presidente do Instituto Questão de Ciência e pesquisadora da USP
SÃO PAULO “Todas as vacinas já disponíveis no mercado seguiram o mesmo expediente para poder chegar aos braços brasileiros: recrutar voluntários para três fases distintas do estudo clínico que prova se um novo imunizante é, afinal, eficaz para combater a Covid-19. E a nova leva de imunizantes, como fica?
Antes, descolar essas pessoas era mais fácil, já que não faltavam mãos levantadas para uma possível blindagem contra a Covid, que desde março de 2020 fez mais de 540 mil vítimas só no Brasil.
Agora que a vacinação avança no país, quem vai trocar o certo pelo duvidoso, abrindo mão de um imunizante já aprovado pela Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) para ser cobaia de um novo? Daí a necessidade de optar por métodos mais complicados, segundo especialistas ouvidos pela Folha.
Numa manhã de julho, cerca de 15 pessoas aguardavam na sala de espera de uma clínica no Rio de Janeiro para anunciar a saída dos testes de um imunizante desenvolvido pela Medicago/GSK que usa planta como matéria-prima.
Brain Ward, médico-chefe da canadense Medicago, diz estar satisfeito com o número de inscritos para a terceira fase, mais de 10 mil, mas não comenta as debandandas.
Um médico brasileiro que atendia voluntários disse que os desistentes vinham aos borbotões. Justificavam-se dizendo que a hora de se vacinar pelo SUS (Sistema Único de Saúde) chegou antes do esperado e não valia a pena pagar para ver se o novo imunizante terá a eficácia comprovada.
Há, ainda, o medo de ter tomado o placebo administrado em metade dos voluntários. A tática faz parte do estudo duplo-cego, que compara um grupo que de fato recebeu a dose com outro que não (quem tomou placebo ganhará a vacina de verdade, mas num segundo momento).
A cena resume um problema que as novas vacinas enfrentarão daqui em diante: verificar sua serventia numa população cada vez mais vacinada contra o vírus. A Butanvac, desenvolvida pelo Instituto Butantan sob a promessa de ser a primeira fórmula brasileira contra a Covid-19, está nesse pacote.
Na semana passada, a Anvisa deu sinal verde para o começo dos ensaios clínicos. A fase 1, para averiguar segurança e dosagem ideal, contará com 418 voluntários, nenhum deles previamente imunizado com outra vacina.
O Butantan estima que todo o estudo dure ao menos 17 semanas (pouco mais de quatro meses). A Butanvac seguirá um princípio chamado de não inferioridade, quando se põe à prova seu desempenho em comparação ao dos que já estão sendo aplicados na população.
Dimas Covas, diretor do instituto, prevê que próximas fases superem os 5.000 voluntários, o que inclui não vacinados e que não foram expostos ao vírus, vacinados (independente do imunizante) e pessoas que tiveram Covid-19.
Os participantes dos ciclos finais, de acordo com Covas, poderão ter recebido qualquer dose já ofertada no Brasil: Coronavac, AstraZeneca, Pfizer ou Janssen. Numa metade será dada nova dose da Coronavac, na outra, a Butanvac. Mede-se, então, se houve algum incremento imunológico. “Tem que avaliar sempre a resposta imune de forma comparativa”, ele diz à Folha.
O método da não inferioridade, basicamente, atesta se a novidade farmacêutica “é pelo menos tão boa quanto a [oferta] que você já tem”, resume Natalia Pasternak, presidente do Instituto Questão de Ciência e pesquisadora da USP. “Se usarmos a Coronavac como grupo-controle da Butanvac, teríamos que mostrar que a Butanvac protege tanto quanto a Coronavac.”
A microbiologista aponta que esse tipo de teste demora mais e é mais caro, porque é preciso recrutar mais gente neste novo contexto: vírus circulando menos com uma população mais protegida contra ele. “Estaremos comparando dois grupos de pessoas vacinadas, portanto precisamos de mais voluntários para conseguir atingir um número de eventos [pessoas doentes] que tenha significância estatística.”
É o que tem para hoje, porque “há uma janela ideal para testar novas vacinas, e ela já está fechando”, já que grande parte da população no Brasil já estará ao menos parcialmente imunizada. “Não é ético, quando você já tem vacinas aprovadas no mercado, conduzir um teste clínico controlado por placebo. Você estaria deixando de vacinar uma parte da população dando placebo.”
“Todo mundo que é potencial candidato já está recebendo a vacinação tradicional”, diz o infectologista Esper Kallás, professor da Faculdade de Medicina da USP e colunista da Folha.
Veja o caso de São Paulo. Já em agosto, o estado pretende começar a vacinar adolescentes. No melhor cenário, os estudos do Butantan chegariam ao fim em novembro.
Uma dificuldade para novos estudos clínicos é compor um grupo homogêneo, afirma Kallás. Alguns dos dados que, segundo o infectologista, deveriam ser considerados: o voluntário tomou uma dose ou duas? De qual imunizante, já que eles têm eficácia diferente? E quando? A pessoa tem 90, 50 ou 30 anos? É homem ou mulher? Já contraiu Covid-19, antes ou depois de vacinado? Tem comorbidade?
Para o virologista Maurício Nogueira, da Faculdade de Medicina de São José do Rio Preto, num cenário em que a maioria da população está imunizada, é mais complicado fazer um ensaio clínico decente para um novo fármaco.
Uma alternativa é usar o que especialistas chamam de correlato de proteção. Seriam exames que estabelecem um patamar para o corpo conseguir se defender da infecção. “Você precisa ter X unidades de anticorpos medidos pelo teste y para estar protegido, por exemplo”, diz Nogueira.
Acontece que não faz nem um ano que o primeiro braço foi espetado com uma fórmula anti-Covid no mundo, então tudo é muito recente para termos esses dados de forma precisa, concordam todos os especialistas com quem a Folha conversou. Internacionalmente, ainda não há um acordo entre cientistas sobre qual seria esse correlato.
“O fato de não ter consenso científico não significa nada”, diz o diretor do Butantan. Segundo Covas, todos têm dúvidas sobre como testar a segunda onda de vacinas, mas os estudos precisam continuar. “Não existem respostas prontas.”
Notícias ao Minuto Brasil – Brasil